O que é a História?

Benjamin, Walter, Sobre Arte, Técnica Linguagem e Política, Relógio D’Água, Lisboa 1992
Descritores: Filosofia Alemã, Ensaio, História, ISBN: 9727081770

[dropcap style=’circle’]W[/dropcap]alter Benedix Schönflies Benjamin, nasceu no seio de uma família judaica no dia 15 de julho de 1892 e suicidou-se em Portbou, 27 de setembro de 1940. É tradicionalmente e com alguma razão à designada Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, onde pontificaram outros grandes vultos da cultura alemã, mais tarde na diáspora, como Adorno Horkheimer, Eric From, Herbert Marcuse. Na sua obra, de espantosa originalidade, vislumbram-se as influências de autores marxistas como é o caso de Brecht, do marxismo em geral mas também de Heidegger e ainda do místico judaico Gershom Scholem. Profundo conhecedor da língua e da cultura francesa traduziu obras tão importantes como os Quadros Parisienses de Charles Baudelaire ou o  Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust. A sua obra onde se combinam ideias aparentemente antagónicas do idealismo alemão, do materialismo dialético e do misticismo judaico, constitui um contributo original para o pensamento contemporâneo, de ano para ano mais relevante. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica  de 1936 e as Teses Sobre o Conceito de História de 1940. Além destes textos e atendendo ao carácter, hoje incontornável da sua obra revolucionária e iluminada, eu destacaria ainda: Paris, Capital do século XIX (inacabado); A Modernidade e os Modernos, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975; Origem do Drama Barroco Alemão, trad. e pref. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984; Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação, 3ª ed., trad. Marcus Vinicius Mazzari, São Paulo: Summus Editorial, 1984; Estéticas do Cinema, ed., apres. e notas Eduardo Geada, trad. Tereza Coelho, Lisboa: D. Quixote, 1985; Obras Escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, trad. S.P. Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1985; Obras Escolhidas, v. II, Rua de mão única, trad. de R.R. Torres F. e J.C.M. Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1987; Obras Escolhidas, v. III, Chrales Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, trad. de J.C.M. Barbosa e H.A. Baptista, São Paulo: Brasiliense, 1989; Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: escritos escolhidos, introd. Willi Bolle, trad. Celeste H. M. Ribeiro de Sousa, São Paulo: Cultrix, 1986; Diário de Moscou, pref. Gershom Scholem, ed. e notas Gary Smith, trad. Hildegard Herbold, São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Histórias e Contos, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 1992; Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por Volta de 1900, pref. Susan Sontag, Lisboa: Relógio d`Água, 1992; O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, trad. pref. e notas de Márcio Seligmann-Silva , São Paulo: Iluminuras/ EDUSP, 1993; Correspondência: Walter Benjamin, Gershom Scholem, rev. Plinio Martins Filho, São Paulo: Perspectiva, 1993; Benjamin, Walter. Kafka. Trad. e introdução Ernesto Sampaio. Lisboa: Hiena Editora, 1994; Os Sonetos de Walter Benjamin, trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1999; Leituras de Walter Benjamin, org. Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: FAPESP, 1999; Origem do Drama Trágico Alemão, ed., apres. e trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004: Imagens de Pensamento, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004; Passagens, org. W. Bolle, São Paulo: IMESP, 2006; Benjamin, Andrew, A Filosofia de Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997.
Da sua obra permito-me glosar livremente um célebre texto sobre o que é a História.

«A história é um anjo que voa de costas em direcção ao futuro».
(É uma imagem sedutora pensar a História sob a forma de um anjo voando. É também uma imagem apropriada porque imediatamente nos transmite o carácter fabuloso da História). 4816P10T1

1º ANDAMENTO

O anjo às vezes voa devagar, outras vezes depressa. Quando o vento, que sopra do Paraíso, sopra com mais força, o anjo bate mais as asas e muitas coisas caem, pessoas e não só; mas o anjo continua, embora não impassível. A verdade é que não pode deixar de continuar voando, sempre em direcção ao futuro. Pois toda a gente sabe que o vento que o empurra ou aspira é o vento do progresso.
O destino do anjo é como o das nossas vidas. Ele aliás é a nossa vida e todas as vidas de todos os tempos e lugares. E afinal todos nós vamos para o futuro agarrados às asas de um anjo. Todos, contudo, num dado momento caímos e rolamos desamparados para o imenso abismo do passado. O mais que podemos esperar, e já não será pouco, é que o anjo incline para baixo o olhar e uma lágrima sua possa rolar pelo angélico rosto.
O anjo voa de costas. Inevitavelmente. O vento forte que sopra do Paraíso empurra-o permanentemente para diante, isto é, em direcção ao futuro, mas ele voa de costas porque a História é a omnipresença do passado nos seus olhos alucinados. A História, sem desprimor, é a lucidez que só o passado pode ter…
Todas as vidas são também o seu passado e o passado é essa massa enorme de detritos, destroços e escombros, tudo isso que o anjo deixa para trás e fica a ver, umas vezes longe, outras vezes perto. E a imensa sombra que ele deixa atrás de si e que é visão perpétua nele, só pode visitar-se na imaginação.

2º ANDAMENTO

Ainda bem que assim é. A História só nos apaixona porque fala de tempos e de lugares que não podemos visitar realmente. Em boa verdade, comove-nos mais o teatro da História do que a realidade. Face ao real ficamos paralisados, incapazes de reagir ou até de chorar, mas face à arte sentimos toda a revolta moral e todas as grandes emoções estéticas que sendo também éticas educam a nossa consciência. É por isso que a História sendo arte é tão importante na formação da consciência cívica e moral da juventude.
A História é o passado, e o passado deixa em todas as vidas um lastro existencial, afectivo e nostálgico, que não se esgota e que alimenta a incerteza do presente e do futuro. Há coisas que não se podem olhar de frente, disse La Rochefoucaud: a morte e o Sol e provavelmente o futuro, acrescentaria eu. O futuro deve ser um clarão medonho, um clarão vazio e assustador, já que o próprio anjo entra nele sem o ver. Quando o vê é já passado.
Mas não se pense que é por medo ou falta de coragem que o anjo empreende esta viagem para o futuro de costas, de modo a poder ver apenas o passado. É que o anjo simbolizando a História simboliza a própria alma humana. O enorme peso das experiências acumuladas e sempre a acumular-se, torna-se um fardo tão pesado que na alma saturada não há espaço para as experiências do futuro, porém inevitáveis. A saturação da alma só pode resolver-se explodindo em nostalgia e memória.
Diz-se que o anjo gostaria de voltar para poder consertar as coisas. Diz-se ainda que no Princípio o anjo está parado, suspenso no ar, de asas desfraldadas. E que é o progresso, quer dizer o vento que sopra do passado em direcção ao futuro, que o empurra contra a sua própria vontade. De um anjo é mais próprio o repouso. Os anjos deviam ser contemplativos como são os deuses. Eu penso porém que o anjo não quereria ficar para arranjar as coisas e muito menos regressar. Para poder simbolizar a História, ele não pode ser senão esse olhar magoado sobre o passado, essa imensa consciência do mal, essa visão do abismo e das trevas, a que não pode fugir, nem fechar os olhos, nem desviá-los, pois essa é a sua condenação, o seu destino, quem sabe. A História é feita de angústia e lucidez. É preciso uma enorme tristeza, para ressuscitar, dos escombros e dos abismos, a sabedoria amarga que vai omnipresente e cristalina nos olhos do anjo.

3º ANDAMENTO

O passado é um lugar onde se concentra uma grande energia sentimental. No fundo o paradigma de todos os passados, o passado por excelência está na alma. É a alma. E daí a Saudade.
Podemos imaginar, agora, a nostalgia do olhar do anjo, abraçando o passado e nele vendo todo o sofrimento, sabendo que voa para dentro do futuro, como quem é aspirado para dentro de um cone de luz onde de repente se faz treva. Ele voa, deixando para trás a imensidão de uma catástrofe, que se torna primeiro penumbra e depois se transforma em sombra. Continuamente. A História, quer dizer o anjo, não quer que essa sombra se transforme em treva definitiva, em definitivo esquecimento. E por isso o anjo para ela olha com os olhos fixos.
Em tudo o que o anjo vê se esconde um princípio de explicação e de compreensão. «Nada daquilo que alguma vez aconteceu deve ser considerado como perdido para a história». Louvada seja a concentração do anjo, pois é no passado que estará a redenção. Daí a Saudade de novo.
Mas o anjo voa velozmente. A verdade do passado é um clarão que logo desaparece. A boca iluminada dos historiadores «no próprio instante em que se abre fala já no vazio». A atenção do anjo, sobre o passado, a atenção que se deve ao anjo, nunca será excessiva.
Que perigos nos espreitam? Só o passado, só a visão aterradora do passado que brilha nos momentos de perigo, sob a forma de uma recordação súbita, pode proteger-nos, «Diante do inimigo, nem os mortos estão seguros».

E PARA O ANJO É SEMPRE AGORA, SOB OS SEUS OLHOS ESCANCARADOS, QUE TUDO ESTÁ A ACONTECER. ELE TAMBÉM PARECE MEXER OS LÁBIOS COMO SE FOSSE FALAR, MAS PRESUME-SE QUE ESTEJA PARALISADO PELA EVIDÊNCIA DA CATÁSTROFE E PELA ACUMULAÇÃO DE POEIRA QUE DOS DESTROÇOS SOBE AO CÉU.

Ser agora seria ser talento e hora.
Mais tarde ou mais cedo será hora.
Tarde ou cedo o Ser será Agora.

*Variações em torno de um tema de Paul Klee, Walter Benjamin e Laurie Anderson

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