VozesA hora do diabo Amélia Vieira - 4 Mar 2025 Por incrível que pareça é um conto de Fernando Pessoa em folhas soltas não datadas que em boa hora chegou à Biblioteca Nacional e foi estruturado e numerado para que tivéssemos uma janela de conhecimento atento e renovado deste pensamento modelar. Quanto ao título, é sempre de cariz contemporâneo e de carácter permanente. Estamos a atravessar um tempo assim com características dinâmicas, surtos de inequívoca falta de lucidez e diminuição dos níveis de discernimento onde empoderamentos vários atiram os diálogos, as vozes, e conceitos de civilidade para patamares que não são mais que danações. Em assuntos de seriedade máxima temos sempre os grandes poetas, e nessa fonte clara, poderemos saber do ontem, hoje e amanhã, enquanto nos encontrarmos por cá em sucessivas vagas de encantamentos e flagrantes repetições a um vínculo demasiado telúrico que parece sempre sobrepor-se à transformação para um mais alto patamar de consciência. As lacunas que precisam ser corrigidas a um texto assim, faz de quem o trabalhou um verdadeiro «chef d´ouvre” algumas páginas são manuscritas, outras não, o título passa de «Hora» para «Noite» e nalguns casos folhas não encimadas requerem enquadramento vigilante para não danificar nenhuma alusão ao seu carácter de mensagem, isto para não dizer que passar de uma língua para a outra em arcaísmos consideráveis, pode ser de facto um processo imerso em pura filigrana para que nada fique de fora. Talvez que estes grandes poetas se abstenham de arrumar e compilar bem os seus dados, e na imersão de uma criatividade que os supera, deixem, e muito bem, para outros, o trabalho burocrático da retificação. Se acorda, se não acorda, se se transforma, é aptidão logística, mas escapar ao fluxo criativo, inventivo, e neste caso, visionariamente perene e repleto de analogias civilizadoras, seria um mecanismo menor estar-se agarrado a uma qualquer consequência métrica. Talvez estejam ébrios, desligados, opiados, na busca da ideia em caracteres vários, sempre imperfeitos e irregulares, e mesmo assim, e passe as incongruências, a língua para ser entendida só deveria ser trabalhada por poetas. O que mais se assemelha a esta “fila do pão” que o Diabo amassou, é uma antiga correspondência ao Mago Merlim, que ao não ser aludido, mesmo assim se encontra presente ao longo de todo este trajecto, um acontecimento que se produz na rua do Carmo onde por si mesmo está distante de uma qualquer fantástica existência, mas onde o Diabo resolveu para não morrer de tédio abordar uma jovem lisboeta, ter com ela uma interessante conversa, e mais tarde, quem sabe, por obra do Espírito Santo, ela engravidasse sem que aparentemente se tivesse passado nada. Neste encontro, o púdico Diabo, crê já a ter encontrado grávida, mas o embrião revolvera-se e despojar-se-ia talvez de um inútil marido dessa Maria, para ser filho de um transeunte enigmático: de facto, essa mãe sempre estivera como as suas palavras o proferiram, na presença de um cavalheiro. E retorquiu-lhe ainda o viajante «que homem pousou sobre teus seios aquela mão que foi minha? que beijo te deram que fosse igual ao meu? nas tardes de sonhar, não viste passar, no fundo dos teus sonhos, uma figura velada e rápida, a que te daria toda a felicidade, a que te beijaria indefinidamente? Era eu» Todo este trajecto numa noite de Estio em uma cidade pacata, olhamos apenas para o reflexo da alma de um condenado com um labor inigualável para o encantamento, uma disciplina vigorosa, e um erotismo transbordante. Seguimo-lo de perto como se de um sonho se tratasse na voz do filho que mais tarde se recordaria entre mundos de o haver escutado, como se o verbo que pronunciara se tivesse feito carne. E porque são estilhaços Do ser, as coisas dispersas Quebro a alma em pedaços E em pessoas diversas. Um testemunho bem mais requintado que a «Metamorfose» de Kafka, e longamente sentido como estranha confissão. A nossa heroína é no entanto a grande criatura, quando volvendo para ele os olhos marejados lhe disse: – Sabe? Tenho pena de si- Eu também. É de facto uma obra que só um homem pode escrever.