Merlim e a bruma

Há reis na Terra que foram Magos distantes de nós por milénios de areias que os cobriram de encanto e simpatia, e há ainda um Prestes João no fundo dos desertos, mais mítico que terreno, que ainda nos interpela no seu jorrante reino do sol, um reino copta a quem os nossos antigos navegadores prestavam culto, mas um Mago todo envolto em brumas é para nós um outro roteiro. Nós habituámo-nos à cultura do deserto, às suas lendas e peles escuras, e quando nos acenam com a magia das culturas do frio ficamos temerários. Pois bem, essa nossa desconfiança não passa de uma disfuncionalidade de latitudes, que tudo se interliga numa mesma noção para que renasçamos dos códigos fechados da estreita razão, das guerras, e dos ciclos dos tempo demarcados. Quase dia de Reis – os Magos- mas um outro ressurge imponente e fecundo, Merlim, que não era rei, mas tudo nele era a consciência de um outro.

Aqui, estamos em pleno Ciclo Arturiano com toda a beleza das brumas de Camelot, estamos no século XII entre os Cavaleiros da Távola Redonda, um reino celta povoado de «Aves Brancas» no lindíssimo poema de Yeats, num tempo gaélico, feérico e brumoso, e toda esta saga nos impressiona como se alguma coisa tivesse que ser complementada a esse mundo sem sombra de onde um Cristo saiu, e dar-lhe então a medida vegetal de uma natureza mais além; estamos literalmente nas nuvens “e não na nuvem” e aqui se reflecte o dom insofismável da beleza da ideia, mesmo que as divinas criaturas nasçam de formas estranhas com paternidades opostas, que neste acrescentar de factos poderemos estar bem mais perto da essência enigmática do cristianismo.

Já Fernando Pessoa nos tinha dado «A Hora do Diabo» nele, uma senhora subia a rua do Carmo quando foi visitada por estranha personagem que lhe dissera que nada tinha a temer pois que era um cavalheiro. Talvez que Pessoa imbuído desta natureza saxónica tivesse ele mesmo experimentado a delícia de um Merlim na sua qualidade de pai de ninguém, ou aligeirado um certo amor que sempre sentira pela criminologia, esse outro não menos grande distintivo poético.

Nós temos pela voz de José Régio uma grande abundância de fluxo a este nível, mas creio que não lhe demos a devida atenção, e agora muito menos, já que interpretar é substância que tarda ou mesmo se evola para níveis tão distantes que quase desaparece, que num dos seus poemas magistrais «o Cântico Negro» encontramos de facto uma impressionante memória remota desta consciência que viria a esculpir um reino tão feérico quanto improvável que ainda nos habita, a nós, que quase passámos incólumes entre ventres e seivas, dando a tudo papéis suplementares para as mães (a quem depreciativamente Pessoa denominou de malas) mas onde nada deles sobejaria se tivéssemos de reescrever toda a história.

Mas eles quem? Um Cristo e um Merlim. Um nasceu de uma Virgem e de Deus, outro de uma Virgem e de Satã, e Merlim foi Mago, Jesus um Cristo, e ambos estão ao comando de multidões. Estamos no reino dos Druidas que quase nos parece uma representação de Saturno, velhos, emblemáticos e extremamente sábios, um legado lendário de anciãos que se oporia por princípio a uma jovial «salvação» exercida por jovens utópicos e sonhadores, que Merlim sempre foi velho e Cristo um jovem homem.

Chegados aqui teremos então uma população mundial, mas sobretudo ocidental, envelhecida e escanhoada numa labiríntica adopção do Mago. Artur quase desaparece, Geneviève pode ser cúmplice erotizante de um outro ardil, e a fada Morgana um alter-ego que subitamente se cale. Lancelot, esse, já não salva ninguém: estamos na presença de um taumaturgo que guardou os segredos por onde o grande herdeiro do Norte deverá agora passar.

De acordo com a profecia, Merlim era o filho bastardo da princesa Real Dyfed, o pai é tido como um anjo que visitara a princesa real, mas todos desconfiavam que era um espírito mau. “Quando ele nasceu, as mulheres tiveram medo dele, pois era um menino grande e muito cabeludo. Nunca elas tinham ajudado a vir ao mundo uma criança como aquela. Entregaram-no à mãe, que fez o sinal-da-cruz ao ver o seu rebento. Meu filho, você me assusta. A nós também, disseram as mulheres”.

Mas sempre será melhor um filho que nos assuste e nos faça fugir para todos os Egiptos do que um irresponsável que apenas venha de modo menor ocupar a cidade.

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