Identidade, Periferia e Globalização: Duas Narrativas de Macau (continuação)

Por Fernanda Gil Costa, ex-directora do departamento de português da Universidade de Macau

Ao ler-se na “Advertência ao leitor” de Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja (publicado em Macau em 2016) que: “A história que se segue não pretende rigor histórico ou justeza, na descrição dos factos, hábitos ou comportamentos de antanho. As datas referidas e os intervenientes querem-se, obviamente, tão ficcionais quanto a realidade” – é expectável entender-se, apesar de tudo, que a encenação histórica das figuras, dos discursos e dos acontecimentos mantêm uma indisfarçável ligação com o presente do leitor português contemporâneo que, por isso, tenderá a interrogar-se sobre as reais condições do alegado passado da efabulação e sobre o sentido do cenário montado sobre factos históricos conhecidos. Neste sentido o leitor modelo de Carlos Morais José é não só o que frequenta o espaço público da cidade de Macau mas também o leitor habitual da literatura portuguesa.

A viagem, o trânsito entre mundos é o espaço da narrativa dentro e fora do relato do narrador. Todas as personagens estão em viagem – viagem por mar, deambulação por impérios e cantos remotos do mundo de quinhentos. Por isso, encontrar a relação com e história e a memória de Macau desde o seu achamento e estabelecimento como feitoria entre ocidente e oriente até ao presente pós-colonial, depois das negociações que conduziram à actual administração chinesa do território, é uma necessidade da leitura.

A orientação do leitor é difícil, pois só a viagem que decorre no presente da narrativa (o enquadramento – a viagem do padre protestante inglês) está escorada por eventos com substância histórica; as outras duas, a do padre irlandês possuidor do documento que é foco do romance, a confissão de Bernardo Vasques em Macau e a leitura da mesma são relatos escritos/lidos por terceiros, pertencendo, portanto, ao tempo suposto-passado da intriga. A variedade e arbitrariedade das referências, citações e ecos da tradição literária filiam-se claramente numa tradição textual pós-moderna especialmente próxima de muita narrativa contemporânea, especialmente de carácter parodístico.

A viagem do padre protestante decorre entre Singapura e Macau (simbolicamente entre o império inglês e o império português); este aporta à chamada Cidade do Santo Nome de Deus em vésperas do incêndio do Colégio de S. Paulo, a primeira universidade católica da Ásia. Tal viagem está, por isso, carregada de sentido simbólico e iniciático já que o protestante vai encontrar em Macau os jesuítas acossados pelos ventos de fim de ciclo que o iminente desaparecimento do colégio vem sublinhar de forma inevitável.

Ainda mais importante é o facto de a viagem entre Singapura e Macau ver falhar a missão do protestante, já que apesar dos esforços que aí empreende não encontra prova que confirme a existência do Arquivo das Confissões dos Jesuítas devido quer ao silêncio das fontes contactadas quer ao incêndio do Colégio de S. Paulo, cujo desejado recheio (onde supostamente as provas se encontrariam) vê arder impotente diante dos olhos.

Voltando a Arquivo das Confissões, um romance histórico publicado em Macau em 2016, o inusitado assunto poderá não ser surpreendente se considerarmos que o território tem uma história razoavelmente desconhecida do grande público no que diz respeito a episódios, memórias e fontes (a par de lendas e mitos de raiz popular luso-chinesa). A isso acresce o facto de nos últimos anos algumas investigações históricas terem contribuído para reforçar a ideia (que se tornara lenda) de que Camões teria vivido e trabalhado em Macau, o que voltou a colocar o poeta e a sua rota do Oriente no centro de indagações e investigações.

Sendo o ponto de partida do romance um assumido desafio a todo o propósito ‘sensatamente’ realista, a sua organização retoma as melhores tradições do género da narrativa enquadrada – gavetas de histórias que se abrem e esvaziam a partir de outras, articuladas em móveis geometrias de eventos misteriosos, de segredos e tesouros perdidos, dando origem à variedade das vozes e ‘fantasmas’ que lenta e intencionalmente desenrolam um imbricado novelo de histórias apenas sustentado por uma teia onírica.

Como foi já referido, o narrador principal é um padre inglês protestante que recebe por mero acaso um segredo perdido e de origem desconhecida, cedendo a voz, na recepção do inesperado tesouro, a um padre católico irlandês, o depositário do tesouro, em trânsito entre mundos. Este possui o manuscrito da confissão feita a um jesuíta português, que a terá ouvido e registado em Macau, de um patético bandido e viajante /navegante português, de neopícaro recorte, o qual durante uma viagem ao oriente teve e gulosamente aproveitou a oportunidade de se apropriar, por roubo premeditado durante uma longa congeminação de inveja, de nem mais nem menos que uma obra desconhecida e autobiográfica (espécie de autografia de recorte epopeico) de Luís de Camões.

Dois registos estilísticos são, assim, fundamentais nesta obra: primeiro, o da literatura de viagem que colhe variações na tradição vastíssima do género (pícaro, aventura, viagem iniciática, literatura de desastre e naufrágio); segundo, o registo da reflexão filosófica que invade a perspectiva e a narrativa através da voz do narrador principal, um padre culto, devoto e inclinado para a dialéctica dos fenómenos humanos e mundanos. A pergunta que se impõe é – como é que esta estratégia literária se conjuga com o lugar e o tempo reais da obra questionada?

A viagem enquadrada que é a intriga central da narrativa e o seu mais remoto passado é a de Bernardo Vasques, narrada em confissão, na primeira pessoa, entre os capítulos sexto e vigésimo sexto. Nela se recupera a história e o ambiente de relatos vários das navegações portuguesas, retirados quer dos cronistas quer das ficções do tempo, como as de Peregrinação.

A história é a de um homem de estudos e esmerada educação humanística a quem a obsessão narcisista de ser o melhor poeta de sempre, desenvolvida durante os tempos de passagem pela universidade de Coimbra, onde se confronta com a já vasta sombra de Camões, exacerba o desejo neurótico e mitómano de o ultrapassar em fama e glória. É curioso notar que Bernardo compõe, com excelência, o perfil tradicional do português apanhado pelo fatal emaranhado de ressentimento, queixume e inveja que o filósofo José Gil descreveu em Portugal, Hoje. O Medo de Existir (2004). Ao comentar as emoções e sentimentos negativos presentes no perfil do “invejoso”, o filósofo destaca sobretudo o ressentimento e o queixume, a que chama um “processo de captura” da consciência em estado geral de vulnerabilidade. Ora, Bernardo Vasques lamenta a sua condição de irmão do meio, embora não deseje a sorte nem do primogénito nem do irmão mais novo e acaba por confessar o esmero da educação que lhe foi dada pelo pai, que o destinava ao estudo das leis. O ressentido e generalizado queixume perpassa as suas palavras desde o início da sua narrativa:

Calhava-me ser humilhado pelo mais velho, aturar-lhe as ordens e a arrogância, garantidas pela sua força física; e obrigado a proteger o mais novo, suportar-lhe as birras, satisfazer-lhe as manias e embarcar na adulação geral. (AC: 41)

Sobre a inveja escreve José Gil, como se descrevesse Bernardo Vasques:

É dentro de um banho de ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É no queixume implícito de se achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que pretende ser maior (SE: 93)

O empolamento mitómano dos sentimentos de Bernardo V. levam-no a aspirar à fama e glória de poeta maior, lugar ensombrado e ocupado pelo vulto gigante de Camões. Incapaz de obter o reconhecimento almejado e cada vez mais colhido pela humilhação e seu “processo de captura”, embarca para a Índia com o intuito de encontrar o poeta e roubar-lhe a obra que o elevou ao trono das letras que para si deseja.

Sabia muito bem o que fazer: ele sofreria. Não como eu. Mas por uma perda irreparável. Não o mataria, não lhe roubaria a vida, mas sim a obra, (AC: 86)

Tal projecto neurótico e alucinado será executado no capítulo décimo quarto, depois de encontrado e reconhecido o velho poeta com a involuntária (e irónica) ajuda de uma figura criada pelo próprio, n’ Os Lusíadas – o soldado que desceu o outeiro mais depressa do que subira (AC: 76-77); a esse episódio segue-se uma série atormentada e criminosa de episódios de bíblica maldade, a par de tragédias encadeadas na tradição tenebrosa dos relatos de naufrágios, que terminam com a perda do pretenso manuscrito por Bernardo, depois de o ter aprendido de cor, de tanto repetir a leitura. O pecador arrependido que em Macau se confessa no final da vida, ostenta igualmente sinais claros de desequilíbrio mental e paranóia esquizofrénica. O desaparecimento misterioso, terminada a confissão, empresta à figura de Bernardo traços alegóricos (a marca do procedimento alegórico está patente no facto de Bernardo não lograr que a mão lhe obedeça para escrever e assinar a obra como sua, apesar de a saber de cor), embora na narrativa arraste o humilhante destino de um ser capturado entre a mediocridade e o desejo de grandeza e vanglória.

Pode um homem transformar-se num livro? Assim parecia. (…) todas as minhas acções se enfeitavam dos seus versos, os pensamentos ferviam de rimas, nada de novo havia que não coubesse ou não estivesse previsto na grandeza desta obra. (AC: 134)

Em conclusão, o registo escrito do delírio paranóico sobre a viagem fracassada de Bernardo Vasques, o transe de recitação (do suposto poema camoniano) depois do qual a personagem desaparece como por osmose entre carne e verbo, ainda antes da absolvição, tal como um pesadelo que cede ao aparecimento da madrugada, levam-nos igualmente à sua pergunta (já citada) entre a retórica e a angústia: “pode um homem transformar-se num livro?” (AC: id.) e ao desespero do impreparado, estarrecido confessor, quanto à justiça da retribuição do perdão divino: “O espírito humano não é um tratado científico e eu sou um pobre leitor cheio de dúvidas e de mísero talento.” (AC: 158).

É também a altura de inquirir em que medida Bernardo Vasques se relaciona com o presente do leitor e a que presente pode de facto aludir. A sua história é alucinada e paranóica, projecção de uma mente configurada pela distorção dos mapas da realidade e da psicótica apreciação do lugar dos outros, aliados ou oponentes dos seus objectivos, a par dos obstáculos que enfrenta (seja a fome e a sede depois de um naufrágio, a solidão absoluta ou a inserção numa comunidade desconhecida e crescentemente hostil). A ausência de escrúpulos, o aventureirismo inócuo e sempre aguerrido, cruel, invejoso e oportunista de um português que demanda o mundo em busca do rasto de Camões para se apoderar da sua (pretensa) obra constitui o inverso da epopeia, o avesso do Gama de Os Lusíadas, a paródia do sujeito lírico de Sonetos e restante lírica amorosa. Bernardo Vasques parece expor, de facto, um presente alheio à memória de grandeza, universalidade e vocação descobridora e inspiradora da história portuguesa de quinhentos.

O leitor poderá ainda questionar-se sobre a verosimilhança do artificioso relato que reúne tanto o temeroso confessor como o penitente Bernardo Vasques. Poderá tratar-se de mais uma variação sobre o sonho obscuro e polémico de que encontramos testemunho nas letras e nas artes desde a Modernidade, pelo menos desde que Goethe (e antes dele Marlowe) criou um inesquecível Fausto, mundano e humano, que através de singular, simbólico pacto com o demónio, plasmou no ser humano o desejo indelével de mais-querer e ir-mais-além, a porfia e o esforço de conhecimento e acção (streben, diz-se em alemão), que é afinal a medida estética e ética em que a verdadeira, exigente dimensão humana modernamente se reconhece, pelo menos desde o Renascimento. O relato, porém, não cessa de empurrar o leitor para longe da rememoração dos tempos de anseios de valor e grandeza. Na moldura da história ressoa a sobriedade do padre protestante que vai a Macau assistir ao incêndio do mais elevado símbolo do império no oriente, o Colégio de São Paulo, a sua análise implacável da inveja, a mola impulsionadora da mediocridade.

Para Carlos Morais José, que afirma sentir-se em Macau um autor português no exílio e deixa voluntárias marcas dessa vivência em toda a sua obra em prosa e verso, onde a língua portuguesa, quase silenciosa nas ruas, é apesar de tudo ainda oficial, a odisseia inversa de Bernardo Vasques é apenas o último testemunho de uma condição de carência e alienação, de teor ontológico, que parece contagiar os poetas e intelectuais que a viagem real (e iniciática) levou para longe dos púlpitos e dos palcos da rotina estético-literária da chamada pátria.

Essa condição de carência (e consciência de ser e devir) pode talvez aproximar-se da recente noção de “Exiliance” criada por Alexis Nouss1 que a considera uma “condição de consciência” comum aos exilados e migrantes de todos os tempos e espaços.

Embora se deva assinalar a probabilidade de uma definição que se alheia voluntariamente dos traços materiais do tempo e do espaço poder aproximar-se de uma visão essencialista do exílio (aliás, sensível na formação do termo exil[iência]), a sua delimitação como “condição de consciência” parece reintroduzir o papel formador e reformulador do tempo e da circunstância. No caso de Carlos Morais José trata-se de uma condição de consciência (mas também de resistência e devir) que se evidenciará igualmente em outras das suas obras, fazendo parte da visão especial de Macau como singularidade radical na sua condição periférica.

Em As Alucinações de Ao Ge e Arquivo das Confissões, um conto e um romance histórico publicados no espaço público de língua portuguesa de Macau posterior à mudança de soberania e consequente emergência de um espaço pós-colonial, encontramos traços de resistência aos monopólios temáticos e discursivos das últimas décadas de narrativas premiadas internacionalmente, navegando os largos mares da chamada Literatura Mundo. Também o denominado grupo de Warwick (WReC), na esteira dos artigos publicados por Franco Moretti em 2000 e 2003 na New Left Review, desenvolve uma ideia de “Literatura Mundial”2 sobretudo entendida como relação dinâmica e dialéctica entre centro e periferia do sistema mundial da literatura, insistindo no valor de resistência atribuído à literatura de regiões periféricas face aos grandes centros de difusão de literatura, ideia que Paulo Medeiros designa também por “imaginação do centro”, sublinhando o interesse “… em obras que resistem, de variadas maneiras, à hegemonia vigente” (Dialética da Periferia: Formas de Resistência na Literatura Mundial: 2021, 221).

Posição semelhante é defendida por Cosima Bruno (Bruno: 2014), que propõe o abandono de uma epistemologia essencialista relacionada com nacionalidade e língua e com origem geográfica estrita (Bruno: 2014, 753). Em seu entender, o caso de Macau, apesar da exiguidade do território (que pode não ser sinónimo de insignificância) apresenta condições para alterar a tradicional divisão do mundo em três domínios conhecidos: centro, periferia e semi-periferia (divisões ligadas, por sua vez, à ideologia colonial e seus avatares no período da globalização). Em seu entender a cultura periférica de Macau pode vir a ser reconhecida como um caso específico de ponte natural entre global e local, permitindo viabilizar uma “candidatura” relevante à categoria de Literatura Mundo.

No final do seu artigo, C. Bruno faz um apelo à tradução da literatura de Macau e acrescenta que isso é essencial:

…not only to contribute to the postcolonial library and to broaden understanding of the ‘literary world’, but also to enable (..) the field of comparative literature together with other literatures (for example Spanish, Portuguese or French) that present global/local structure (Bruno, 2014: 67).

Tal interesse pela literatura de Macau, obviamente marginal no contexto actual da Literatura Mundo, é o que melhor pode dar testemunho do legado intranquilo patente na história e na memória da cidade e apelar à herança mal escrutinada do seu passado colonial e marginal.

O facto incontornável de esta literatura ter contornos e fronteiras incertas (expressão de várias línguas e pertenças) projeta e sublinha o papel intermediário da tradução e pode alterar, a mais curto ou longo prazo, o perfil e a representatividade cultural deste território simultaneamente indefinível, insular e plataforma de globalização.

Referências:

Alexis Nouss 2015.

A expressão “Literatura-Mundial” é utilizada por Paulo Medeiros em português (membro do grupo WReC) e é, em meu entender muito semelhante à “Literatura-Mundo” (semelhante à expressão francesa Littérature-Monde), utilizada pelo Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa.

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