A sensibilidade trágica perdida dos Estados Unidos – III

O implacável Paul Nitze, decano dos “apparatchiks” diria que quase tudo o que tem sido escrito e ensinado sob a bandeira da ciência política na América desde a II Guerra Mundial tem sido contrário à experiência e ao senso comum. Também tem sido de pouco valor, se não mesmo contraproducente, como guia concreto para a política. Ainda mais abrasivo é o historiador Bruce Kuklick que diria que os intelectuais serviram para legitimar as políticas, não para as impulsionar.

A função básica, embora não a única, das ideias estratégicas era fornecer aos políticos ficções que dessem sentido à opinião pública. A crítica do filósofo britânico Mark Bevir era de que a história da ciência política é menos uma história de estudiosos que testam e melhoram teorias referindo-se a dados e mais uma história de apropriação e transformação de ideias, muitas vezes obscurecendo ou obliterando significados anteriores, para servir novos objectivos em diferentes contextos políticos.

A questão é que não foram as ciências sociais que informaram o poder, foi o poder que seleccionou as teorias que justificavam o que ele achava que tinha de fazer. Vemos isto em acção quando os Estados Unidos, no final da Guerra Fria, se convencem de que é tempo de alargar o sistema internacional criado em 1945 a todo o mundo, de globalizar.

Uma ambição partilhada por duas administrações, a de Clinton e a de Bush filho. Mesmo com as suas inegáveis e radicais diferenças, partilharam a ideia de que o poder tecnológico, económico, cultural e militar permitiria à América estender a sua influência centrada na democratização, na interdependência comercial e no primado do direito. A ser alargada pela persuasão ou imposta pela força. As teorias nascidas na esfera económica ou social ganham assim popularidade, estendida aos assuntos internacionais devido ao súbito desaparecimento do elemento conflitual, devido à ausência de antagonistas ao modelo liberal-democrático.

É o caso da escolha racional, da maximização do interesse (económico) ou do funcionalismo institucional. Difundem-se determinismos políticos como a teoria da paz democrática, segundo a qual o tipo de regime determina uma política externa plácida e centrada na procura do bem-estar económico.

Com origem na década de 1980, com o influente artigo de Michael Doyle em Kant, foi defendida pelos governos Reagan e Clinton, acabando por ser incluída em documentos oficiais como a Estratégia de Segurança Nacional de 1994, defendendo que todos os interesses estratégicos americanos, desde a promoção da prosperidade a nível interno até ao controlo das ameaças globais antes de atingirem o território americano, baseiam-se no alargamento da comunidade das democracias e dos mercados livres entre as nações.

A falta de utilidade destas teorias reside, em grande medida, na atribuição de uma racionalidade abstracta e absoluta aos sujeitos históricos. Muitas vezes, entende-se a racionalidade económica, embora as escolhas geopolíticas quase nunca sejam feitas com base num cálculo material de custo-benefício. Ou então é entendida como uma racionalidade ocidental, ignorando o peso das diferentes culturas nas decisões relativas a factores intangíveis como o custo e a honra nacional. Ou então, os factores irracionais, emocionais, sentimentais, difíceis de medir e, no entanto, ponderáveis, são completamente eliminados. Aqueles que secam tudo à pura racionalidade nunca leram as “Memórias do subsolo”, de Fiodor Dostoievski, um hino ao livre arbítrio da auto-destruição.

Qualquer disciplina corre o risco de uma racionalização excessiva. Mesmo a geopolítica, se cair no erro de atribuir um carácter determinista as observações deveriam ser casuísticas e dinâmicas, ou seja, sujeitas ao inevitável desgaste do tempo. Em suma, as ciências sociais sofrem de uma falta de consideração pelos pontos de vista dos outros. É um outro ponto de contacto com a ideia de que a América tem de si própria e da sua missão universal.

De que serve o vosso ponto de vista se eu sou o melhor a que podem aspirar? Paralelamente, se eu tiver a teoria certa e os dados que seleccionei a provarem, ela funcionará independentemente da sua vontade. Vejamos novamente Kaplan, quando cita o ilustre classicista Charles Segal de que a tragédia existe como uma forma de arte para que não esqueçamos as dimensões da vida que existem para além das estruturas da civilização.

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