A minha boca é um cravo

«… Na tua boca desfeito, nascem cravos murcham cravos desfolhados no meu peito»

Estávamos em 1968 e Adriano cantou a profecia. Adriano Correia de Oliveira, o mais expressivo jogral dos nossos tempos cuja vida breve, por muitos não foi esquecida. Foi uma presença modeladora que nos brindou, a sua quase visionária voz só tomou corpo anos mais tarde quando a vida não contemplava muito mais merecimento por ter sido um canto de plena aurora, e nos deixou entregues à sarna do intervencionismo especulativo das vozes de ocasião. Por isso nos tempos das guerras das flores, ele canta ainda, e encanta a todos aqueles que em seu presente nos trazem futuro.

Adriano é nome de Imperador, e também tinha aquele perfil tão nítido e imperturbável, grave e distinto, sabia bem olhá-lo e, foi ainda numa manhã clara de Abril que nasceu com timbre de Primavera na graça de um chão de flores; era um jogral, bem distinto de um cantor, ele será para sempre o mais eloquente dos cancioneiros com um não sei quê de profeta e de senhor pleno de disciplina e nostalgia, aqueles seres que não há, mas existem para sempre em nosso imaginário; este Adriano que nos recita na sequência da canção cantada, que: «o coração só desfolha se lhe apodrece a raiz/triste destino da gente, da gente do meu país» Mas, ” outro cravo é o coração/ desfolhado no teu peito” foi um grande intérprete da canção e um arauto pleno de amanhãs.

Toda esta gente não merece flores, que elas se dão e contemplam no ciclo iniciático das promessas, nas germinais conquistas do amor, nas seivas poderosas da ternura e nos ciclos sociais das grandes conquistas, esta gente não merece flores. Arrancadas à terra. Há guerras de Alecrim e Manjerona, uma comédia de enganos de António José da Silva em pleno século dezoito, o nosso «Judeu» mas a vegetal interpretação dará agora azo a trocadilhos carnavalescos entre rosas e cravos, o que não difere em nada do propósito humorístico do autor. Muitas vezes os mais ferozes seres optam por coisas singulares de brancura gélida, nevoeiros e rosas brancas, eles são exclusivamente puristas na abordagem da matéria e nos reflexos das claríssimas ornamentações, só que nada disso corresponde ao vislumbre da Supraconsciência do outro lado do portal. São assim porque sim, mas nunca sensíveis nem fraternos, rubros, amantes e intensos como os escarlates seres de generosa afirmação.

Rosas no Inverno, já Dom Dinis desconfiara, mas enfim, quem planta pinhais, acresce-lhes roseiras, e os milagres são sempre bem-vindos, e mesmo assim o rei mais esclarecido deixou passar como sinal de amor, só que ele morreria em pleno Inverno com dúvidas acerca das suas “flores de verde pino” mas nunca se escusando ao superlativo acto de uma crença real. Infelizmente que não o temos mais entre nós para dizer de sua senhoria as coisas estranhas que o acometeram, mas não duvidemos jamais da sua boca em cravo desfeito em amores estivais tão rubros quanto o seu ardor. Nesse tempo teríamos um Adriano inebriante e um rei com recitativos e cravos em sua boca, e toda a beleza que se desfaz e recomeça, nos beijos que damos somente no tempo de todas as flores.

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