Linguística | Publicado estudo baseado numa viagem a Macau no século XIX

A académica Anabela Leal de Barros acaba de publicar um estudo linguístico que incide sobre a viagem do padre Miranda e Oliveira, ligado à Congregação da Missão, a Macau em 1825. Com laivos de história, são revelados detalhes sobre o português da época e de Macau. O livro será apresentado no Centro Científico e Cultural de Macau na próxima quarta-feira

 

“Viagem de Lisboa para Macau – 1825” é o título da mais recente obra editada pela Grão-Falar, da autoria da académica da Universidade de Minho Anabela Leal de Barros.

O livro faz uma análise crítica e interpretativa ao português da época deixado no manuscrito do pároco José Joaquim de Miranda e Oliveira, sacerdote da Congregação da Missão. Esta documentação está à guarda do Arquivo Distrital de Braga. Porém, a obra não desbrava apenas o português da época, revelando outros detalhes históricos de Macau, da Ásia e de uma viagem marítima.

Segundo contou Anabela Leal de Barros ao HM, a obra é “o mais fiel possível à ortografia do manuscrito”, até à data praticamente desconhecido.

Neste diário de viagem, o padre Miranda e Oliveira “revela enorme curiosidade diante de todas as novidades e vai partilhando connosco os seus nomes nas línguas do mundo que as baptizaram, começando pela nossa”.

É dessa forma que explica situações como “o enjoo marítimo, realidade ainda relativamente desconhecida e fortemente invasiva nas embarcações”, naqueles tempos. O padre nomeou ou definiu “os mangalhões, as toninhas, as caravelas, os feijões-frades, os voadores, as albacoras — toda a sorte de aves e de peixes que ao longo da viagem se admirou, pescou ou provou”, ou ainda os “fenómenos meteorológicos com os nomes locais – cacimba, samatra, tufão”. Há também detalhes sobre os “hábitos culturais como a masca, buio em indonésio; às seges filipinas, os berloches, e à classe dominante dos camisolas, bem como às sômas, embarcações chinesas”.

A embarcação partiu de Lisboa em Abril de 1825 e demorou-se nas Filipinas, chegando a Macau a 23 de Outubro. Descreve-se a chegada “à ilha de Caó” e no dia seguinte “ao Colégio de S. José”, a “uma cidade com ‘um magnífico porto de comércio’, situada ‘em uma península assaz agradável’, com ‘boas águas’ e ‘famosos edifícios à europeia'”.

Variedades linguísticas

Na obra editada pela Grão-Falar há, por exemplo, “histórias ricas como a das Orvalhadas de S. João, do Caldeirão de Frei Junípero ou do hábito de os mareantes gritarem ‘Refresca S. Lourenço!’ para que o vento sopre, sendo esse o significado aqui de ‘refrescar'”.

Há também “alusões à própria variedade linguística”, pois “em vários momentos se refere a comunicação com estrangeiros feita em latim, em território indonésio-holandês e filipino-espanhol; o ensino particular do inglês nas Filipinas por membros da Congregação da Missão; o pouco conhecimento e uso do espanhol, mesmo em Manila, e a variação do próprio tagalo, língua em que o sacerdote se preocupa em deixar registada a Ave-Maria”.

Antes de chegar a este relato de viagem, Anabela Leal de Barros já andava nos meandros da investigação deste tipo de manuscritos, deparando-se com a história de outro sacerdote, “o maior sinólogo português, Joaquim Afonso Gonçalves, que viajara da mesma casa de Rilhafoles da Congregação da Missão para Macau em 1812”.

Segundo a autora, este pároco “dedicou os últimos vinte e nove anos da sua vida à missão de evangelização na China, e em particular à investigação e ensino do chinês no Colégio de S. José em Macau”. Em toda a sua vida, “este transmontano escreveu mais de cinco mil páginas de gramáticas e dicionários em português, latim e chinês, expressamente dedicados aos seus alunos do Colégio, sete impressos na sua tipografia e pelos menos dois manuscritos”.

Depois, em 2017, António Lázaro, do Departamento de História da Universidade do Minho, e director do Instituto Confúcio, disponibilizou a Anabela Leal de Barros “uma lista de referências a manuscritos do Arquivo Distrital de Braga sobre Macau e a China”. Iniciou-se, então, uma “viagem” que culminou na edição deste estudo.

“Este livro é o primeiro fruto de um projecto meu de edição e estudo de manuscritos inéditos de literatura de viagens cujo objectivo principal é exactamente esse: contribuir para a valorização e consolidação da micro-história dos Descobrimentos e da memória da história, entre os séculos XV-XIX”.

Acompanhado em viagem

José Joaquim de Miranda e Oliveira demorou cerca de sete meses a chegar a Macau, partindo de Lisboa a 1 de Abril de 1825, e chegando a Oriente a 24 de Outubro do mesmo ano. Partiu no navio Vasco da Gama com mais três padres da congregação: João da França de Castro e Moura, Jerónimo José da Mata e José́ Ferreira da Silva.

Segundo Anabela Leal de Barros, “o manuscrito não parece ter sido passado a limpo pelo próprio autor, atendendo ao tipo de variação ortográfica e de gralhas e emendas que apresenta”, tendo sido, provavelmente, “trasladado, para salvaguarda de cópias, por algum membro macaense do Colégio, já que o português de Macau, no século XIX, tinha características compatíveis com certos traços, estranhos num sacerdote chegado de Portugal, ainda que jovem”.

Este diário de viagem “termina no próprio dia da chegada a Macau, com a brevíssima apresentação da cidade e do colégio, ficando já clara a perspectiva católica da época diante do culto chinês dos antepassados e sem se deixar de chamar a atenção para os meros cinco mil cristãos no conjunto dos 40 a 50 mil habitantes da cidade”.

Hostilidades políticas

José Joaquim de Miranda e Oliveira descreve como o bispo de Macau não recebeu a comitiva, o que é “suficiente para nos conduzir ao contexto hostil em que se achavam os lazaristas, defensores do liberalismo, o que levara Joaquim Afonso Gonçalves, poucos anos antes, a refugiar-se nas Filipinas, tendo o colégio ficado desfalcado de dois dos seus mestres”.

Além disso, “ao longo da viagem o sacerdote não deixa de narrar todos os momentos em que vai realizando a sua missão diária, com a administração dos sacramentos, a reza de responsos e a celebração de missas, mas sobretudo regista a notável falta de sacerdotes que revelam os povos cristianizados, em particular em Batávia, actual Jacarta, onde a comunidade de origem portuguesa, de mais de um milhar de pessoas, contava apenas com um velho padre”.

Nestes relatos revela-se ainda a preocupação de “recordar os primeiros mártires franceses da Congregação na tentativa de evangelização de Madagáscar e de relatar a presença de frades e padres das diversas congregações, de Cabo-Verde às Filipinas, onde estes são reconhecidos como mais importantes para a solidez do domínio espanhol do que o seu exército”.

Segundo Anabela Leal de Barros, o relato aludiu também, em Java, “aos luteranos e maometanos, bem como às religiões da China e, em Manila, à perseguição dos cristãos (referindo o ‘jantar’, ou seja, almoço com um chinês cristão, ‘e como tal perseguido’)”.

Miranda e Oliveira terá tido “uma conduta muito diplomática e convivial, assegurando o estabelecimento e manutenção de relações cordiais entre as várias ordens e igualmente com os governadores e potências estrangeiras em presença, dos holandeses aos espanhóis, que visitam em todas as paragens”.

Um projecto em curso

Nestes anos, era uma aventura perigosa viajar de barco, enfrentando-se “os povos antropófagos, a pirataria, as doenças dos embarcadiços e as epidemias”, uma “visão perfeitamente cinematográfica” já descrita n’Os Lusíadas, de Luís de Camões. Quem embarcava nestas viagens também se via só, “individualmente e num pequeno navio pouco mais que uma casca de noz, diante de um mar infindo, durante meses, em tempos nos quais era comum vários passageiros não chegarem ao destino, ou não regressar sequer um navio de uma esquadra completa”.

No relato de Miranda e Oliveira “não há grandes novidades” face a relatos anteriores, mas “somos inteirados das principais dificuldades das viagem marítima para a Ásia no século XIX: as pedras existentes ainda antes da Torre de Belém, que causavam não poucos naufrágios; e o enjoo, que merece mesmo definição para os muitos leitores que nunca haviam posto os pés num barco, e a propósito do qual se refere a facécia do capitão aconselhando as senhoras enjoadas a subir à tolda e a trabalhar, por ser o melhor remédio”.

Há ainda “o episódio do homem caído ao mar da charrua que os acompanhou em parte da viagem, que não conseguiram salvar — uma morte a que todos estavam tão expostos, como refere o narrador”. Destaca-se também outra potencial peripécia em viagens deste tipo, “o encontro com navios que, não hasteando de imediato qualquer bandeira, ou hasteando-a sem dar confiança de verdadeira, conduziam imediatamente à decisão de acender os morrões e abrir fogo, o que bem traduz a dimensão da pirataria e os receios que impunha”.

Essencialmente, “a personagem principal das viagens marítimas era o vento”, o que levou o ainda “jovem sacerdote” a “evocar por duas vezes os versos camonianos da tempestade”.

Depois da chegada a Macau, Miranda e Oliveira partiu para o seu posto em Nanquim, “numa viagem comparativamente mais demorada que a primeira, recebido pelos cristãos a custo e secretamente”. “Diante de perseguições” acaba por sucumbir “aos perigos e enfermidades da terra firme, aos 31 anos, longe de todos os seus confrades, logo a 1 de Novembro de 1828, apenas dois anos depois de ter descrito a difícil despedida da sua família espiritual, em Lisboa”. “Tiveram mais longevidade os seus companheiros de viagem, um dos quais viria a ser Bispo de Macau e o outro, de Pequim e do Porto”, destaca Anabela Leal de Barros.

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