Das Fábulas

Rua do Sol ao Rato, e a saudosa Matilde Rosa Araújo exclama com aquele seu ar de fada: uma fábula! De facto é um nome que somente a criatura debruçada nos efeitos juvenis sabe identificar como uma casualidade onírica. A maneira como o disse e transmitiu deixou entrever que vivemos entre definições extremamente poéticas e que tudo ao nosso redor é da ordem da própria fábula, que seu antropomorfismo vem de muito longe, ao tempo dos sumérios, que já incluíam formas curtas e directas para nomear ou contar histórias.

Nós somos todos construtores de fábulas até pela permanência dos nossos animais de estimação, eles falam-nos, e reproduzimos as suas vozes que depois se soltam por grandes silogismos que nenhuma narrativa deve esquecer, e vamos às de Esopo, as mais famosas, não desmerecendo as de La Fontaine muitos séculos mais tarde.- Podemos sim, apelidar como fábulas, ruas, conceitos, tendências, na inscrição do insolitamente inesperado da sua própria correlação, aliás, neste aspecto, Portugal é uma fábula que a si mesmo se desconhece, mas será necessário um pouco mais que a armadura das inventivas nomeações para que ela se construa e entenda: a fábula é uma composição literária em prosa ou verso não muito longa onde a permanência animal é constante, paradoxalmente fá-lo entre animais na vertente “fabulare” que significa falar, um refrão encoberto pela sabedoria popular tendo sido adaptado ao sistema educativo infantil, que como todos sabem, povo e infância tinham em comum essa capacidade de construtores de mundos.

Dessa analogia peculiar foi ainda um escravo chamado Fedro a trabalhá-la muito depois do escravo Esopo que foi o verdadeiro artífice da matéria e nos deu tanto quanto foi possível imaginar o seu legado mais precioso, mas também se diz que fora apenas um contador em formato oral na sua Grécia onde tudo isto era popular desde remota antiguidade, pois que há evidências que não foi encontrado nada escrito e ainda aconteceu que papiros egípcios relataram certas histórias que viriam a adaptar-se a estas outras. Dir-se-ia que estamos diante de textos morais metafóricos em forma de crítica, que o engenho linguístico é o dom daqueles que no pântano cinzelam e fazem brilhar os seus cristais, mais tarde falariam ainda por parábolas e a sensação que fica é que nada de nós existe sem o verbo, a palavra, o “fabulare” que leva à fábula. Para não esmorecer a tónica do sujeito, teremos sempre as Mil e uma Noites – noites da Arábia- que é a Fábula elevada à categoria de quimera.

A criatura da fábula, Esopo, seria assassinada, talvez pela incisiva capacidade transgressiva da linguagem, e se tanto o foi, é já distante, mas hoje, mesmo na ruína da imaginação, estamos convictos da perigosidade do falar (apenas excluídos os frenéticos falantes deixados ao suplício de Prometeu). Ao contrário do que se julga, a língua e a escrita são plataformas de encantamento, sabedoria, que devem escusar qualquer razão, armadilha argumentista, que todas as lesões ao seu estatuto devem ser entendidas como um duro golpe na própria consciência verbal. Nenhum sistema fonético humano está adequado a um tal transtorno de emoções desavindas e cálculos de intenções que provocam um ruído inaudível e uma artificial labuta pela inteligência. Há ainda o fabuloso fabulista, um sírio de nome Bábrio a que muitos referem a autoria de duzentas compilações que nos chegaram e cujo Vaticano possuí algumas em folhas de papiro.

La Fontaine é em certa medida aquele nome que nos traz também a fábula em sonoridade de fonte e fontanário; «Fábulas escolhidas» onde praticamente metade são aquelas atribuídas a Esopo e Horácio em lindíssimo verso livre, uma espécie de Naus Catrinetas, tão cantáveis como memorizáveis, e muitas ainda, memoráveis.

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