Perspectivas VozesO fio ético da ciência Jorge Rodrigues Simão - 4 Set 2025 “The sciences are unaware that they lack a conscience.” Edgar Morin O ano de 2025 não chegou com fanfarra, mas com fadiga. O mundo, após uma década marcada por pandemias, governação algorítmica, colapsos ecológicos e fragmentação epistémica, encontra-se suspenso entre a aceleração e o esgotamento. Neste clima, o aviso profético de Edgar Morin no seu livro “A Ciência com Consciência” considerada como ruína da alma ressoa não como um aforismo ultrapassado, mas como um diagnóstico estrutural. A sua lamentação dos anos 1990 sobre a cisão entre conhecimento e sabedoria exige agora uma releitura radical. Pois, em 2025, a crise deixou de ser meramente moral; tornou-se ontológica. As próprias categorias pelas quais compreendemos a realidade, verdade, vida e identidade foram desestabilizadas pela expansão desenfreada da tecnociência, pela mercantilização da cognição e pela erosão do sentido partilhado. A tese original de Morin, enraizada no pós-II Guerra Mundial e na ascensão da ciência nuclear, advertia contra o triunfo da racionalidade instrumental dissociada da reflexão ética. Via na figura de Fausto não apenas um arquétipo literário, mas uma trajectória civilizacional na busca de poder através do conhecimento, desancorada da responsabilidade. Hoje, esse impulso faustiano metastizou. Inteligência artificial (IA), biologia sintética, neurocapitalismo e engenharia planetária deixaram de ser domínios especulativos e são realidades operacionais. Contudo, a consciência que deveria acompanhar tal poder permanece conspicuamente ausente, ou pior, terceirizada à lógica de mercado e aos algoritmos preditivos. Adaptar a obra de Morin à realidade de 2025 exige, antes de tudo, confrontar a ruptura epistemológica que define a nossa era. A ciência, outrora uma busca pela verdade, tornou-se um campo de batalha de narrativas concorrentes. Modelos climáticos são politizados, dados epidemiológicos instrumentalizados, e até o conceito de evidência se vê submetido a fidelidades tribais. A promessa iluminista da razão universal fragmentou-se em câmaras de eco e silos epistémicos. O apelo de Morin ao “pensamento complexo” capaz de integrar incerteza, contradição e interdependência é mais urgente do que nunca. Mas a complexidade hoje não é apenas uma virtude intelectual. É uma estratégia de sobrevivência. Considere-se o domínio da IA. Em 2025, sistemas de IA governam não apenas logística e finanças, mas também sentenças judiciais, acesso à educação e até companheirismo emocional. Estes sistemas, treinados em vastos conjuntos de dados, reflectem e amplificam os preconceitos dos seus criadores e das sociedades de onde aprendem. No entanto, a sua autoridade raramente é questionada. A opacidade dos modelos de aprendizagem automática, combinada com a fetichização da eficiência, criou um novo sacerdócio de tecnocratas cujas decisões estão blindadas contra o escrutínio democrático. A crítica de Morin ao reducionismo e à tendência de isolar variáveis e ignorar o contexto encontra aqui a sua expressão mais inquietante. O algoritmo não pergunta porquê; optimiza. E ao fazê-lo, corrói as próprias condições da deliberação ética. A biotecnologia oferece outra fronteira onde a ciência sem consciência ameaça romper a condição humana. A edição genética, outrora confinada aos laboratórios, é agora comercializada como melhoria. A linha entre terapia e aumento esbate-se, e com ela, o conceito de normalidade. A insistência de Morin na inseparabilidade entre biologia e cultura torna-se um correctivo vital. Pois o que está em jogo não é apenas a manipulação de genomas, mas a redefinição do que significa ser humano. A tentação de engenhar inteligência, emoção e até moralidade arrisca reduzir a pessoa a uma função programável. Neste contexto, a consciência não pode ser um pós-escrito mas deve ser o arquitecto. A dimensão ecológica do pensamento de Morin exige igualmente renovação. Em 2025, o Antropoceno deixou de ser um construtor teórico para se tornar uma realidade vivida. Refugiados climáticos, colapso da biodiversidade e padrões meteorológicos erráticos testemunham as consequências planetárias da arrogância científica. Contudo, a resposta dominante permanece tecnocrática pois esquemas de geoengenharia, mercados de carbono e painéis de resiliência. O humanismo ecológico de Morin e a sua visão da Terra como sistema vivo em que os humanos são simultaneamente participantes e guardiões oferece uma contra-narrativa. Apela a uma ciência que escuta, coexistee e cura. Não uma ciência de dominação, mas de comunhão. Talvez mais urgentemente, a obra de Morin deve ser reinterpretada à luz da fragmentação cultural. Em 2025, a identidade tornou-se simultaneamente refúgio e arma. A aldeia global prometida pela conectividade digital degenerou em enclaves tribais, cada um com a sua epistemologia, moralidade e estética. A ciência, outrora ponte entre culturas, arrisca a tornar-se ferramenta de exclusão. A linguagem da especialização aliena, os rituais da revisão por pares que intimidam, e os indicadores de impacto distorcem. O apelo de Morin à transdisciplinaridade e ao diálogo entre ciência, arte, filosofia e experiência vivida não é um luxo, mas uma necessidade. Só entrelaçando múltiplas formas de saber poderemos restaurar o tecido do sentido partilhado. Esta “Ciência Sem Consciência” reimaginada deve, portanto, ser mais do que uma crítica, deve ser um manifesto. Deve apelar a uma pedagogia da complexidade, a uma política da humildade e a uma ética do cuidado. Deve desafiar as instituições científicas a democratizar os seus processos, a confrontar os seus pontos cegos e a abraçar a incerteza não como ameaça, mas como condição da verdade. Deve convidar os cientistas a tornarem-se cidadãos, e os cidadãos a reclamarem a ciência como bem público. Neste espírito, a universidade deve ser reconstituída. Deixando de ser um silo de especialização, deve tornar-se um santuário de integração. Os currículos devem ser redesenhados para cultivar não apenas competência técnica, mas imaginação moral. Os estudantes devem ser treinados para perguntar não apenas “como”, mas “porquê” e “para quem”. A investigação deve ser avaliada não apenas pela sua novidade, mas pela sua relevância, inclusividade e capacidade de iluminar a condição humana. A visão de Morin da educação como processo de despertar e de aprender a viver, a compreender e a coexistir deve orientar esta transformação. Do mesmo modo, a publicação científica deve evoluir. A fetichização dos factores de impacto e das contagens de citações criou uma cultura de produtividade performativa. O conhecimento fragmenta-se em artigos hiper especializados, inacessíveis ao público e frequentemente irrelevantes para preocupações prementes. Um ecossistema editorial reimaginado deve priorizar acessibilidade, interdisciplinaridade e envolvimento público. Deve recompensar síntese, reflexão e a coragem de colocar questões fundacionais. Os mídia, também, devem recuperar o seu papel como mediadores da consciência. Em 2025, a comunicação científica é frequentemente reduzida a títulos sensacionalistas e debates polarizados. A nuance, o contexto e a humildade que Morin defendia são vítimas da economia da atenção. Os jornalistas devem ser formados não apenas em literacia científica, mas em discernimento ético. Devem resistir à tentação de simplificar e, em vez disso, cultivar a arte da complexidade. Devem contar histórias que iluminem os dilemas, os riscos e a humanidade por trás dos dados. Ao nível geopolítico, os insights de Morin oferecem um quadro para repensar a governação global. A pandemia revelou a fragilidade da cooperação internacional e os perigos do nacionalismo científico. Em 2025, a diplomacia vacinal, as negociações climáticas e a soberania digital continuam a ser arenas de contestação. Uma ciência infundida de consciência deve advogar pela solidariedade planetária. Deve reconhecer que vírus, moléculas de carbono e algoritmos não respeitam fronteiras. Deve apelar a instituições ágeis, inclusivas e responsáveis não apenas perante Estados, mas perante povos, ecossistemas e gerações futuras. Esta visão exige coragem. Pois as forças que se opõem à consciência são formidáveis pois objectivam motivos lucrativos, inércia institucional e rigidez ideológica. Mas a alternativa é insustentável. Uma ciência sem consciência conduz não apenas à decadência moral, mas ao colapso civilizacional. Gera alienação, injustiça e ruína ecológica. Reduz o espírito humano a uma variável num modelo, a um nó numa rede, a um consumidor de inovação. Para resistir a esta trajectória, devemos cultivar o que Morin chamou de “reliance” que é a capacidade de conectar, cuidar e co-criar. Devemos redescobrir a alegria da indagação, a humildade de não saber e a responsabilidade de saber. Devemos construir instituições que honrem a complexidade.