A saúde sexual é complexa — e ainda bem

Numa época em que se fala cada vez mais de saúde mental, a discussão pública sobre saúde sexual permanece tímida — muitas vezes limitada a temas como infeções sexualmente transmissíveis (IST) ou gravidez indesejada. O artigo recentemente publicado na International Journal of Sexual Health, da autoria de Manão, Brazão e Pascoal, intitulado “How to Define Sexual Health? A Qualitative Analysis of People’s Perceptions”, devolve-nos alguma da complexidade do conceito a partir da perspetiva das pessoas.

O estudo, que analisa as respostas de 151 participantes em Portugal à pergunta aberta “o que significa para si saúde sexual?”, oferece um retrato multifacetado.

A primeira conclusão relevante é que, para estas pessoas, a saúde sexual não se resume à ausência de doença. Para muitos dos inquiridos, trata-se de uma realidade que abrange o corpo, mas também as emoções, os relacionamentos, a autonomia pessoal e o contexto social e político. Esta visão vai ao encontro da definição mais abrangente proposta pela Organização Mundial de Saúde, uma proposta que tem em conta os muitos fatores que influenciam a saúde e o bem-estar de diferentes modos.

Os temas emergentes — sobre a fisicalidade do sexo, a autonomia, as questões relacionais e íntimas, e a justiça sexual — revelam uma evolução progressiva face à visão tradicional (biomédica e genital), no sentido de um conceito mais inclusivo e contextualizado. É revelador, por exemplo, que muitos participantes associem saúde sexual à capacidade de sentir prazer, de comunicar desejos com o parceiro ou de se sentirem respeitados nas suas escolhas.

Num momento em que se retiram temas de sexualidade da disciplina de Cidadania nas escolas portuguesas, em resposta a receios “ideológicos” infundados, estudos como este evidenciam a importância de continuar a discutir abertamente a sexualidade — e, em particular, a saúde sexual. Esta deve ser entendida como um sistema multifatorial complexo, que exige espaços de igualdade, respeito e liberdade para se ser quem se é, sem medo de discriminação.

É essencial que a saúde sexual seja plenamente integrada nos modelos de saúde, para que a sua força epistémica ganhe novo vigor. A ausência de preconceito, a existência de políticas públicas inclusivas e o acesso equitativo a serviços de saúde sexual foram identificados por alguns participantes como elementos estruturantes, para que cada pessoa possa cuidar efetivamente da sua saúde sexual. A sexualidade, afinal, não é apenas um assunto privado, mas também um campo político.

Outro aspeto relevante diz respeito à responsabilização individual, refletida no tema sobre autonomia. Muitos participantes reconhecem que cabe a cada pessoa cuidar da sua sexualidade, procurar informação, comunicar com o parceiro e, quando necessário, recorrer a serviços especializados.

Esta autonomia é, sem dúvida, essencial. No entanto, a ênfase exclusiva na responsabilidade pessoal pode facilmente escorregar para uma lógica de healthismo — uma ideologia que transfere o peso da saúde inteiramente para o indivíduo, ignorando os determinantes sociais, económicos e culturais. É precisamente aqui que a perspetiva crítica do artigo — e deste campo de estudos — se torna fundamental: não basta promover a saúde sexual como escolha individual; é necessário criar condições estruturais para que essa escolha seja realmente possível.

A saúde sexual é mais do que um tema de consultório ou de sala de aula; faz parte dos mecanismos de significado que sustentam a vida social. É um reflexo direto da sociedade que construímos. O tipo de saúde sexual que promovemos revela muito sobre os nossos valores coletivos — sobre o quanto valorizamos o corpo, a liberdade, o respeito e a justiça.

Importa ter presente que, apesar da sofisticação conceptual evidenciada neste estudo, se trata de uma amostra de 151 pessoas, na sua maioria com ensino superior, recolhida através de uma técnica de amostragem em bola de neve — ou seja, os participantes foram sendo referenciados uns pelos outros. Não podemos ignorar que estes dados representam uma visão situada, e não necessariamente generalizável à população em geral. O que quer dizer que há mais formas de compreensão que podem não estar a ser acedidas, muitas delas que podem ainda ser problemáticas ou indesejáveis.

Qualquer tentativa de desconstruir modelos biomédicos de saúde a favor de uma abordagem socio-política mais abrangente é, de facto, de extrema importância. A saúde sexual não se define apenas pela ausência de vírus ou bactérias, mas por uma compreensão mais completa de bem-estar, em que os fatores socio-políticos precisam de ser analisados, compreendidos e, em algumas situações, transformados. Se há uns tempos este era um trabalho relevante, agora é um trabalho urgente.

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