O Papa Americano (II)

“Let us disarm words and we will help to disarm the world.”

Pope Leo XIV

A Carta a Diogneto foi preservada em um manuscrito medieval. Destruída em 24 de Agosto de 1870 pela artilharia prussiana no bombardeio da biblioteca de Estrasburgo, mas preservado para a posteridade em três cópias do século XVI. Entre pergaminho, Constantino e ofensa bélica, haveria motivos para gritar milagre e catalogá-la entre as relíquias sagradas. Não tendo autoridade para tal, é de limitar a evocar o fundo deste autorretrato de grupo pintado por um seguidor de Jesus para uso do pagão Diogneto. Prolegómeno a toda geopolítica cristã. Em análise trinitária. Primeiro, «Os cristãos representam no mundo o que a alma é no corpo». Segundo, «Habitam cada um na sua pátria, mas como se fossem estrangeiros; respeitam e cumprem todos os deveres dos cidadãos e assumem todos os encargos como se fossem estrangeiros; cada região estrangeira é a sua pátria, mas cada pátria é para eles terra estrangeira». Terceiro, «São como peregrinos que viajam entre coisas corruptíveis, mas esperam a incorruptibilidade celestial». Pode-se imaginar algo mais actual?

Mais subversivo do que o ordo amoris evocado pro patria sua por J.D. Vance na qualidade de vigário do bispo de Mar-a-Lago, que suscitou reprovação no moribundo Francisco e na então eminência Prevost? Um fio misterioso liga o desconhecido escriba paleocristão às correntes de disputa em torno da missão evangelizadora. É de desenvolver para historicizar a essência antropológica e social do homo catholicus ao longo de três pistas paralelas e entrecruzadas como milagres da geometria divina no sentido e forma da Igreja; a sua relação com o poder político e a sua raiz euro-ocidental. Três maneiras de compreender a crise da empresa cofundada pelos santos Pedro e Paulo nos seus dois mil anos de história. Temos assim uma ideia do que está em jogo hoje. Sim, o barco está a afundar enquanto a orquestra toca maravilhosas melodias. Prevost é chamado a endireitá-lo. É verdade, «não é mais tempo do homem sozinho no comando». Mas sine papa nulla ecclesia. E sem Igreja, muitas seitas. Até mesmo satânicas.

O Vaticano, Capela Sistina, manhã de 9 de Março de 2013. Os senhores cardeais estão reunidos em pré-conclave para traçar o perfil do sucessor do papa Ratzinger. O arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, faz um discurso improvisado fulminante de cinco minutos sobre o mistério da Lua. Alegoria destilada no início do século III na eclesiologia alexandrina, em torno do grande exegeta Orígenes (cerca de 183/6-254/5), que lê no tríptico astral Sol-Lua-Terra o nexo Deus-Igreja-Mundo. Para Bergoglio, é um manifesto da Igreja evangelizadora, imune às inclinações mundanas daqueles que a querem fechada em si, por si e para si. Ousando brilhar com luz própria. Não reflectida pelo Sol/Deus para iluminar a sua missão terrena. Narcisismo teológico ao dizer «Às vezes penso que Jesus bate por dentro, porque o deixamos sair. A Igreja autorreferencial pretende manter Jesus dentro de si e não o deixa sair». A evocação lunar contribuirá para a convergência de grande parte dos cardeais em torno do candidato argentino, derrotado por Ratzinger no conclave de 2005, também graças ao apoio do confrade Cardeal jesuíta Carlo Martini que denunciará o atraso bicentenário da Igreja em relação ao mundo em favor do teólogo bávaro.

Atrito entre jesuítas. A imagem lunar fala da inspiração intelectual que o contacto com a tradição helenístico-romana inspira nos primeiros cristãos. O cristianismo primitivo é filosófico, depois dogmatizado na teologia. Baseia-se na tradição neoplatónica para procurar respostas aos seus paradoxos, como a presença do Mal no mundo criado por Deus ou a divindade de Cristo no contexto monoteísta estabelecido pelo judaísmo. O que teria sido o cristianismo, o que restaria dele sem tanta hibridação? «Filosofia verdadeira», para dizer com Justino (100-163/7), pai da Igreja. Pensamento que se torna poesia. Nos seus símbolos alegóricos reconhecem-se os mártires, testemunhas de uma fé ilícita. Ateus, para os pagãos. Daí a inculturação entre cristãos e seguidores do panteão greco-romano afiliados ao culto, não ao dogma. Entre eles destacam-se os adoradores do Sol Invictus, do Helios querido pelo imperador Juliano (331-363), apóstata na tradição cristã.

No entanto, a sua mística solar «não era mais do que cristianismo disfarçado», observará Hugo Rahner, jesuíta a quem devemos uma profunda investigação na parábola do “Mysterium Lunae”. A sintonia cristã entre o Sol e a Lua é, de facto, influenciada pela desconstrução do culto solar helenístico-romano para o assimilar ao vínculo luminoso Deus-Igreja. Preparação para a Luz de Cristo. A encruzilhada entre teologia e missão versus autorreferencialidade dogmática que ainda divide o povo de Deus tem origem na apreciação da hibridização entre a prática cristã e os cultos pagãos, pois a cristianização de Helios e Selene é o ápice do sincretismo da era patrística. Diluição da verdadeira fé, pródromo da heresia, segundo os puristas que contraem o cristianismo em doutrina imune ao tempo.

Tese à iteração do dogma, à recitação febril do Credo. Enriquecimento da comunidade cristã para aqueles que, em vez disso, se deixam fertilizar «de fora». Rahner dizia que «O cristianismo nunca se apresentou como pura e simples doutrina». Foi capaz de realizar com perfeita segurança de si o gesto de se apropriar de tudo o que era verdadeiro e bom que tinha sido adquirido pelo espírito grego, e que lhe pertencia originalmente como propriedade, mesmo que ninguém o soubesse». De Orígenes ao futuro Francisco, o “Mysterium Lunae” percorre sub-repticiamente os séculos do papado. Os seus raios incidem tanto na teologia como na própria estrutura da Igreja. Em pleno século XIX, século do Sillabo e do Vaticano I, ápice do isolamento doutrinário e geopolítico do papado dentro das Muralhas Leoninas a exegese pregada no século XX por jesuítas como os irmãos Hugo e Karl Rahner ou Henri de Lubac é antecipada por John Newman, antigo anglicano e depois cardeal da Santa Igreja Romana, para quem «o que os pagãos disseram de verdadeiro, a Igreja fez seu».

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