VozesO Papa Americano Jorge Rodrigues Simão - 17 Jul 202517 Jul 2025 “The bishop is not supposed to be a little prince sitting in his kingdom, but rather called authentically to be humble, to be close to the people he serves.” Pope Leo XIV Leão XIV encarna a dupla crise da América e da Igreja Católica. Versão contemporânea da antiga tensão entre o império e o papado. Sujeitos incomparáveis por natureza que, por constituição, se excluem mutuamente. Nascidos para redimir o mundo de acordo com os seus princípios. Com a arma do poder em todas as suas dimensões expressas hoje na Terra, depois de amanhã talvez noutros planetas, a América. Com a intenção de converter a humanidade à presença do Reino de Deus encarnado em Cristo, a Igreja de Roma, mediadora entre o Céu e a Terra. Missões impossíveis, mas indispensáveis. Está em jogo a própria identidade. A vida. Cada uma, no seu plano, vive e sofre do crisma original do Ocidente, ao qual ambas se referem de forma diferente; o universalismo. Parte que se sonha inteira. Sonho que se transforma em pesadelo para os Estados Unidos, que temem morrer globalizados por terem ousado americanizar o mundo. Pelo contrário, a Igreja que, com Francisco, esboçou a saída para as periferias constata que as ovelhas não são muito atraídas pelo pastor, muitas vezes fogem dele. Especialmente no seu núcleo de origem, europeu e ocidental. E se a Igreja desaparecesse de si mesma? Cabe ao novo papa, veremos se mais híbrido ou americano, estabelecer em concílio sinodal a trajetória do povo de Deus. Cabe à sua pátria natal discernir se e como aproveitar a sua esteira para se curar. O clima actual informa-nos que Washington e Roma não seguirão caminhos paralelos, muito menos solidários, para curar a doença que parece assimilá-las. A instituição temporal dotada de religião civil, o “American way of life”, opta com Trump por uma dieta geopolítica de emagrecimento de nada de grandes e comprometedoras aventuras no vasto mundo, fortificação do reduto americano em expansão ártica. Fiel à tradição ocidental desfigurada pelos iluministas, positivistas e comunistas. A outra, de inspiração celestial e inculturação variada nos territórios de missão marcados pelas dioceses, herança tardo-romana, não tem casca em que se retrair sem se desfigurar. A abertura à ecúmene é a sua razão de ser. A ser modulada de acordo com uma geopolítica eclesiástica sempre actualizada. Nunca se submetendo ao “Número Um” do momento. Se Trump, entusiasmado com a tomada americana do Vaticano com o advento de Leão XIV, conta com um catolicismo pós-franciscano disposto a oferecer um suplemento de alma ao seu magistério rude e imprevisível, está enganado. Como se ilude o alto clero da Santa Igreja quando confia ter arrancado um bilhete premiado ao escolher um sucessor americano para Pedro. A oferta da Papal Foundation e de outros patrocinadores prometidos do outro lado do Atlântico «tem condições», tem restrições rigorosas, como informam «doadores» em equilíbrio entre Deus e Mamona. É claro que, antes de se encerrarem na Capela Sistina, os cardeais passaram muito tempo a discernir as consequências financeiras da inspiração que o Espírito Santo lhes teria concedido, o que, parafraseando o jargão eclesiástico, é uma revelação. A sede vacante não é tempo de virtudes teologais, mas sim cardinais. Como observou em 1997, com ironia curial, o cardeal Joseph Ratzinger a quem lhe perguntou se o papa era eleito por escrutínio divino afirmou «Eu não diria isso, no sentido de que é o Espírito Santo que o escolhe. Diria que o Espírito Santo não assume exactamente o controlo da questão, mas sim, como bom educador que é, deixa-nos muito espaço e liberdade, sem nos abandonar completamente. Assim, o papel do Espírito Santo deve ser entendido num sentido muito mais elástico, não que dite o candidato em quem se deve votar. Provavelmente, a única certeza que oferece é que o facto não pode ser totalmente arruinado. Há demasiados exemplos de papas que, evidentemente, o Espírito Santo não teria escolhido». Não sabemos se o acaso, a necessidade ou a Providência impuseram Robert Francis Prevost no trono de Pedro precisamente na encruzilhada entre as duas (suas) crises. Certamente é um sinal dos tempos. Vulgarmente representado na selfie artificial divulgada pela Casa Branca, com a qual, na véspera do conclave, o pseudo-Trump disfarçado de papa invadiu a esfera mediática. Quase como para santificar a comunhão entre a Quarta e a Primeira Roma, em ordem hierárquica. Faltava apenas que o pontífice cesariano se dividisse em dois para se dar a unção real. Ironia do conto, pois na fotomontagem, o papa Trump veste-se totalmente de branco, como Francisco. Talvez também por isso, ao ostentar-se urbi et orbi, Leone enriqueceu a batina branca com os símbolos clássicos do pontificado. Mas um grão de verdade expõe essa imagem blasfema. Há muito de eclesiástico na autoconsciência da América. Da mesma forma, há muito de imperial na história da Igreja. Os Estados Unidos nascem e crescem como uma religião autocentrada em peculiares declinações cristãs. Independentemente da seita ou confissão a que pertençam, os americanos vivem versões estreladas e listradas. Católicos incluídos. Os catolicismos americanos, bastante mundanos, mais conscientes e conflituosos do que nunca, ocupam espaços distintos no rebanho do pastor de Roma. Com e contra as ramificações protestantes predominantes, estabelecidas ou neo-evangélicas, professam o Credo Americano. Religião celebrada na sua época áurea pela nação-Igreja autodenominada ápice da humanidade. Farol da Liberdade, portanto, universal. Autocéfala e ao mesmo tempo católica no sentido etimológico e, portanto, ecuménico da palavra. Como consequência de tantas contradições formidáveis, a crise de identidade da superpotência mundana é ao mesmo tempo própria e mundial. A Santa Sé, grandioso repositório de cultura e fé, expressão geopolítica da Igreja de Roma e seu órgão supremo de governo no Estado da Cidade do Vaticano, em plena Urbe, nasce, vive e confronta-se com o imperium sine fine em todas as suas ramificações. Os túmulos romanos de Pedro e Paulo, primeiros impulsionadores da evangelização, confirmam a potentior principalitas, a autoridade preeminente do caput mundi em relação aos veneráveis patriarcados originais de Antioquia, Alexandria, Éfeso, Corinto e Tessalónica. A religião dos apóstolos germina sob Tibério na Palestina, expande-se na pars occidentalis da Primeira Roma, delimitada pela instável bipartição estipulada em Brindisi entre António e Otávio quarenta anos antes de Cristo, sanção da heterogeneidade permanente entre Oriente e Ocidente. Depois, baptiza com Constantino a Segunda Roma, ideal-tipo da metrópole de fundação totalmente cristã. Há um milénio que disputa com a ortodoxia da Terceira Roma, coração do império moscovita que se exibe cristão, na utopia de ser reconhecido como terceiro pulmão do Ocidente, com a Europa e a América. E há oitenta anos convive com a primazia terrena da Quarta Roma, eleita por puríssimos pais peregrinos anglo-irlandeses e erigida por ex-colonos britânicos apaixonados pela tradição helenístico-romana, de modo a corresponder em código através de pseudónimos latinos. A Ecclesia permixta descrita por Santo Agostinho, referência de eleição do papa Prevost, onde se misturam trigo e joio, fertilidade e esterilidade, amor e inveja, descobre-se ferida. Os cismas líquidos que a corroem tendem a coagular. A prioridade do pontificado é a costura das rupturas que dilaceram o corpo da Igreja. Sem renegar Francisco, fechar algumas das brechas por ele abertas, distinguindo aquelas que merecem ser preenchidas das perigosas ou precárias, descartáveis. À espera que os posthumos releiam o seu papado, captando alguns traços proféticos demasiado incoerentes com a realidade, não só eclesial, para poder já agir. Hoje ressoa o aviso de Bento, mestre do agostinianismo, sobre a necessidade de proteger a missão ad extra do excessivo optimismo sobre a fé como «pressuposto óbvio da vida comum» afirmando que «Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e que a luz seja mantida escondida». Mesmo que isso signifique que a Igreja se queira isolar de graça no mundo sem graça? O clero católico divide-se em três. Aqueles que privilegiam a missão, aqueles que privilegiam a instituição e aqueles que navegam entre as duas correntes. A pedra de toque continua a ser o Concílio Vaticano II. Para os primeiros, deve ser desenvolvida a abertura missionária ao povo de Deus, ou seja, à Igreja propriamente dita, juntamente com o impulso ecuménico. Para os segundos, prevalece a defesa da tradição contra a submissão aos sinais dos tempos, que pode induzir à heresia. Sair ad gentes, portanto, contaminar-se para evangelizar, ou entrincheirar-se em nome da fé «pura»? Na história, o carisma do papa inclina o barco de Pedro para um lado ou para o outro. Hoje muito mais do que ontem, com o pontífice superstar, enquanto o seu povo parece contrair-se, em crise de caridade interna e de atracção externa. Na vulgata, Francisco é considerado um campeão irregular da Igreja em saída, pela história, doutrina e carácter. Pastor por excelência. Ou em excesso, para os críticos. Bento XVI, seu predecessor traumatizado pelo peso do múnus petrino, é o epónimo do fidei defensor. Teólogo perspicaz. Herr Professor raro do seminário. Claustrofóbico. Simplificações questionáveis, mas poderosas. Leão XIV nem um nem outro. Pelo menos nas intenções de muitos dos seus eleitores. Convertam-se a ele a partir das margens opostas, conscientes das cisões latentes ou já efectivas que estão a fragmentar o arquipélago eclesiástico em ilhas e ilhotas autocentradas. Católicos diferentes. Certamente não romanos. A biografia e algumas palavras do papa americano exaltam a sua vocação pastoral, a proximidade com os humildes. Gestos pontifícios e outras palavras marcam a recuperação de símbolos e liturgias tradicionais. Com uma metáfora política que outrora nos teria colocado no Índice dos Livros Proibidos, poderíamos ver em Prevost um democrata cristão renascido, ancorado no centro, olha para a esquerda enquanto toma cuidado para não ter muitos inimigos à direita. Ou vice-versa. «Pedro, adelante con juicio» expressão da novela “Os noivos” utilizada para pedir a alguém que proceda con precaução e discernimento em uma situação difícil ou complicada. Leão XIV deve governar a Igreja em missão. Fixar o rumo, manter o leme direito, revitalizar a Cúria e reconectá-la às periferias eclesiais, muitas vezes indiferentes, se não adversas, à cátedra de Pedro. Para manter o mundo à beira do abismo de guerras sem fim. Os princípios da Igreja confiaram a este monarca tranquilo e decidido a tarefa de curar as feridas que sangram o rebanho de Cristo. Para que o fim do catolicismo não antecipe o fim do mundo. Talvez seja tarde, talvez não. Certamente é uma tarefa que Leão XIV poderá iniciar, mas não consolidar. A doença está demasiado disseminada, há muito tempo, para ceder a terapias milagrosas. Passou quase meio século desde o desaparecimento do último pontífice vocacionado (não só) para o governo da Igreja que foi Paulo VI (1963-1978). Os quatro sucessores não quiseram ou não puderam dedicar-se à máquina de Pedro. João Paulo I (1978) por falta de tempo e de firmeza, João Paulo II (1978-2005) por excesso de personalidade, Bento XVI (2005-2013, falecido em 2022) por comovente inaptidão, Francisco (2013-2025) porque queria «fazer barulho» («hagan lío!») para poupar o seu rebanho da morte por asfixia clerical. Papas conservadores e/ou revolucionários, inadequados e/ou relutantes em reformar na continuidade. A decomposição do tecido católico e a desculturação da sua classe dirigente são tais que excluem um Vaticano III. A menos que se aspire a uma implosão libertadora, para recomeçar a partir de micropatriarcados autocefálicos, nacionais ou subnacionais, de tom neo-ortodoxo. Mais facilmente, a partir de seitas espiritualistas emotivas de cunho neo-evangélico, fiéis a Mamona. Para compreender o desafio do Papa Prevost, convém partir daqui. Está em jogo o sentido da Igreja. Tanto espiritual como terreno. Nunca existiu nem poderá existir um cristianismo separado da realidade do mundo. A Santa Igreja Romana foi e continua a ser, apesar de ferida, um formidável sujeito geopolítico que desenhou a história universal. Há dois mil anos, católicos e outros cristãos vislumbram nela vários sinais e cores. Retiram dela lições diferentes. Doutrinárias, pastorais e geopolíticas. Para muitos, confirmação da fé em Cristo. Para menos, mas influentes, anúncio do apocalipse iminente. Aos estudiosos da geopolítica, resta a obrigação de estudar a visão e a acção da Santa Sé no cenário da história, cruzando no sentido próprio e figurado o factor humano e a especificidade religiosa. Elegemos como Carta Magna do modo cristão de estar no mundo o misterioso “Carta a Diogneto”, manuscrito grego anónimo do século II-III encontrado em 1436 em Constantinopla por um clérigo latino.