Grande Plano MancheteCabo Verde | Família Évora, entre Macau e o resto do mundo Hoje Macau - 3 Jul 2025 Amanhã celebram-se 50 anos da independência de Cabo Verde, o país de onde saiu a primeira levada da família Évora na década de 40, rumo a Macau, onde ganhou raízes. Hoje em dia, apenas um membro da família permanece no território, o médico cardiologista Mário Évora Houve em tempos uma dezena de Évoras em Macau, onde chegaram na década de 40, mas apenas Mário Évora resiste, com a família a repetir as migrações que marcam tanto Cabo Verde como os macaenses. “Chegámos a ser entre oito e dez Évoras em Macau”, disse à Lusa o especialista em medicina desportiva Humberto Évora, a partir de Lisboa, onde vive desde que se reformou. Os avós maternos de Humberto (o último da família a nascer em Cabo Verde) e Mário (o primeiro a nascer em Macau) chegaram ao território no Oriente no fim da década de 40, com cinco dos seis filhos do casal. Um ano depois, a filha que tinha ficado com o marido em Cabo Verde veio para Macau, já com o bebé Humberto. O plano inicial era para dois anos, mas o casal acabou por ficar três décadas e ter mais três filhos: Mário, Rui e Maria Helena. Em 1971, foi a vez de Humberto e Mário partirem para estudar Medicina em Lisboa, mas não sem um grande susto ligado à guerra colonial que já durava há uma década. “Como fomos para a universidade podíamos adiar a inspecção militar, mas os papéis não vieram de Macau e corríamos o risco de ser considerados refractários”, recordou Humberto. A situação resolveu-se, mas Mário admitiu à Lusa o receio da mobilização. “Tínhamos essa perseguição, tínhamos de ir passando de ano para não ir dar com os costados na guerra”, explicou. “O choque” em Lisboa À chegada a Lisboa, “fomos logo acolhidos e integrados na comunidade de estudantes cabo-verdianos”, disse Humberto, numa altura de agitação estudantil e política. “Houve períodos em que era quase diário, manifestações de estudantes contra o regime, a polícia de choque entrar pela cantina dentro e dar umas cacetadas”, sublinhou Mário. Humberto admitiu que “foi um choque, para quem vinha de Macau, onde havia pouca cultura política e a guerra colonial era vista como uma luta contra terroristas”. Num Verão, o jovem, que chegou a estar integrado num grupo cabo-verdiano de música de intervenção, partiu com um amigo “à boleia pela Europa fora de guitarra às costas”. “Lembro-me sempre da primeira vez, em França, que vi na televisão a guerra colonial descrita ao contrário, a luta pela libertação de um poder colonial de ocupação”, disse Humberto. A independência Quando os dois irmãos terminaram o curso de Medicina, a independência de Cabo Verde, em 5 de Julho de 1975, levou-os a equacionar um regresso às raízes. “Havia um movimento de muitos dos nossos colegas de irem contribuir para um país novo, que começava a dar os primeiros passos”, referiu Mário, já então cardiologista formado. Até porque, recordou Humberto, alguns dos amigos de Lisboa se tinham, entretanto, tornado membros do Governo de Cabo Verde. “Houve essa possibilidade, mas o regresso a Macau, a um sítio onde tinha passado tanto tempo, foi natural”, explicou. “Nasci em Cabo Verde, passei parte da minha vida em Portugal, cresci em Macau, também sou macaense. Sou um cidadão do mundo”, defendeu Humberto. Os macaenses são uma comunidade euro-asiática, a maioria dos quais lusodescendentes, com raízes em Macau, embora muitos tenham emigrado, devido à situação económica ou ao receio criado pela transição da administração de Portugal para a China, em 1999. Dos irmãos Évora, Rui, engenheiro, partiu antes da transição para Cabo Verde, onde chegou a trabalhar no projecto do hotel-casino que o empresário de Macau David Chow construiu na Praia, mas que ficou por inaugurar. A irmã mais nova, Maria Helena, especialista em ciências documentais que chegou a trabalhar no Arquivo Histórico de Macau, está actualmente na Câmara Municipal de Oeiras. Os filhos “estão todos fora”, entre o Reino Unido, Cabo Verde e Portugal, disse Mário. “Agora o mundo é mais pequeno e é ir onde há oportunidades”, defendeu. Também Humberto encara as migrações “como um processo natural, não só para os cabo-verdianos, mas até para os macaenses”. Nada que tenha impedido os dois irmãos de manter os laços com o arquipélago. Humberto divide o tempo entre Portugal e Cabo Verde, sendo há décadas o médico oficial das delegações desportivas cabo-verdianas às principais competições internacionais. Mário foi um dos fundadores – e presidente durante dez anos – da Associação Amizade Macau-Cabo Verde. “Tivemos cá o Ildo Lobo, o Tito Paris, e a minha prima”, disse o cardiologista, antes de fazer uma pausa e acrescentar, com um sorriso: “a Cesária Évora”.