Via do MeioA delicada arte de traduzir o invisível: entre Confúcio, Heráclito e a poesia das lacunas Hoje Macau - 27 Jun 2025 Por Fernando Santoro, Caroline Pires Ting, Verônica Filippovna e Jean-Yves Beziau* Existe uma diferença invisível entre o que vemos e o que dizemos. Entre o que está inscrito na matéria e o que escorrega em palavras. Quem se debruça sobre a filosofia da linguagem – ou quem já se aventurou a traduzir um poema chinês de dois milênios atrás – percebe bem disso. Muitas vezes, a tarefa do intérprete é encontrar essa diferença invisível e mostrá-la com novas palavras. Muitas vezes, a tarefa é deixar o invisível e o inaudível preservado nas lacunas. O caso da escrita clássica chinesa (文言文, wényánwén) é emblemático. Mais do que um código de comunicação, trata-se de um modo de pensar visualmente. Uma lógica de composição de sentidos que se dá pela disposição espacial, pela densidade gráfica e por uma economia de linguagem que desafia os hábitos frasais das línguas ocidentais. Traduzir versos de sabedoria escritos em wényánwén é como tentar decantar o silêncio de uma pintura caligráfica para dentro de uma sentença de sintaxe definida. É um sonho que sempre ultrapassa a realidade; mas ainda cabe ao intérprete sonhar que são reais os sonhos do sábio e poeta. Tomemos a inscrição ritual da dinastia Shang, gravada em bronze, na banheira do imperador Tang, que proclama: 「苟日新,日日新,又日新」 Em leitura aproximada: “Se renovar num dia, renovar-se todos os dias, e novamente renovar-se.” Note-se a ausência de sujeito, de artigos, de tempos verbais definidos. Tudo é sugerido por contexto e ritmo interno. O contexto é o que serve aos olhos e ouvidos do intérprete – seja a banheira do imperador, seja o campo de semear do lavrador, seja o papel em branco do poeta. O ritmo interno do poema inspira-lhe o ritmo da sua respiração, até que o tempo das palavras se torne o tempo da sua vida junto à vida ao redor. No original, a inscrição se apresenta de forma vertical, como segue (reconstituída em arranjo tipográfico para ilustração): 苟 日 新 日 日 新 又 日 新 Três blocos verticais. Três gestos de escrita que ecoam no espaço como um mantra ético-visual. Não há sujeito, não há tempo verbal definido. Apenas um convite à renovação, repetido como quem inscreve o tempo na matéria. Um tempo ternário: inspira, retém, expira. Movimento do exterior para o interior. Ponto de inflexão. Movimento do interior para o exterior. A semântica dos ideogramas insere-se no movimento: 日 sol/dia 新 novo/renovar/inovar. Movimento da manhã, quando nasce o sol novo – o sol levanta o novo dia (acima). Movimento do amanhã, quando de novo nasce o dia – o dia, sol de novo. No ponto de inflexão, renova-se o dia, dia após dia, de sol a sol. Do bronze à vanguarda: Pound e Augusto de Campos como tradutores de lacunas A primeira operação de tradução para o Ocidente moderno veio com Ezra Pound, que, inspirado pelas anotações de Ernest Fenollosa, traduziu o aforismo confuciano para o inglês com ecos de entusiasmo modernista: “As the sun makes it new / Day by day make it new / Yet again make it new.” Pound não apenas traduziu: transmutou. Fez do conselho ético uma bandeira estética: Make it new, lema da poética modernista do século XX. Lema de inspiração ao mesmo tempo tradicional e inovadora, à medida que Pound compunha sua própria poesia a partir de traduções livres de poemas clássicos – intraduções. Inspira-se a tradição. Reflete-se sobre o fulcro expressivo e vital do poema. Expira-se um poema novo e inovador. Décadas depois, Augusto de Campos, movido pela poética concretista brasileira, ao traduzir a tradução de Ezra Pound com experimentos gráficos de letraset, recriou o aforismo em português: “RENOVAR DIA SOL A SOL DIA RENOVAR.” A geometria sonora e rítmica, aqui, reencena o jogo de repetição e cadência que a inscrição de bronze já sugeria. Na intradução de Campos, ressoa o lema do paideuma poundiano e retorna a sintaxe da diagramação dos caracteres visíveis no verso de Confúcio. A equivocidade semântica do ideograma 日 retorna no cruzamento da lavra poética: dia a dia, sol a sol. Ambos os poetas compreenderam que traduzir o chinês clássico não é apenas tarefa lexical. É um ato estético, quase ritual, de reencenar o gesto original por outros meios. Recuperar a forma e o movimento que perfazem os contornos do que precisa ser captado pelo leitor, pelo intérprete, daquilo que deve por sua vez instigá-lo a mover-se à medida que é tocado pelo efeito do sentido. O desafio filosófico: como traduzir o que resiste à tradução? A questão vai além da poética. Traduzir o chinês clássico é um problema filosófico que requisita um pensamento hermenêutico sensível e uma ousadia para construir a ideia em outra forma. Porque a ideia, para uma tradução entre culturas tão diversas, não pode ter uma forma definida, mas é o que permite transitar entre as formas dos signos e das palavras de uma língua às formas que podem ser assumidas em outra. Estamos diante de um desafio de transposição estrutural: a passagem de uma lógica de relações espaciais dos ideogramas para uma lógica de conexões lineares entre sujeitos e predicados; de uma sintaxe diagramática visual para uma linearidade ditada pela sequência fonética; de uma composição escrita sem norma sintática para uma gramática de palavras com funções sintáticas definidas. Um desafio de traduzir em diversos níveis de encontros e desencontros intraduzíveis. Como bem aponta o conceito chinês de 本末 (běnmò), há sempre uma raiz (本) e suas ramificações (末). Na tradução, não buscamos repetir o original como cópia, mas enraizar em outro solo e fazer florescer os ramos de sentido brotados da raiz anterior. E não se trata apenas de dilemas orientais. O mesmo impasse aparece na tradução de conceitos gregos clássicos como aretê (ἀρετή). Virtude? Excelência? Potência? O termo, como mostra Kinnucan (2014) ao comentar o Dicionário dos Intraduzíveis, recusa-se a ser fixado em um único significado. Traduzir aretê ou wényánwén é sempre um ato de decisão hermenêutica, de escolha de mundos: aquele mundo em que acreditamos que o autor viveu, este mundo em que vivemos, o outro mundo em que desejamos nos encontrar. Traduzir é criar: entre fidelidade e invenção Contemporâneo de Confúcio, mas vivendo no extremo ocidental do continente asiático, Heráclito expressou, com versos semelhantes, uma ideia sobre a natureza do sol e sobre o primeiro grande enigma astronômico: por que o sol sempre nasce do lado oposto ao lado do céu em que se põe? καὶ ὁ ἥλιος οὐ μόνον e o sol não somente νέος ἐφ᾿ ἡμέρῃ ἐστίν, é novo a cada dia ἀλλ᾿ ἀεὶ νέος mas sempre novo (Fragmento B6, Diels & Kranz, Aristóteles, Meteorológica II, 2, 355a 14) Heráclito e Confúcio, cada um a seu modo, fizeram da concisão uma arte filosófica. Ambos escreveram para sugerir mais do que explicar. Para apontar caminhos ao leitor, sem entregar o mapa. O sol da natureza e o dia de lavrar a própria vida reúnem, no arco de uma distensão espaço-temporal, a física de Heráclito e a ética de Confúcio. Neste arco de várias pontas couberam os poetas do século XX, Ezra e Augusto, para inspirar uma nova estética e, quem sabe, ainda cabemos nós para aprender com todos eles. Tensionados neste arco do sol, os raios nos alcançam, nos ferem e iluminam. Talvez, no fundo, a tarefa do tradutor seja essa: não decifrar o enigma, mas recriar um novo, que vai nos devorar e regurgitar em palavras. Preservar o mistério, enquanto se nos transforma. Na delicada passagem da sintaxe espacial do sol que nasce e se eleva, para a linearidade sonora da voz que inspira e expira, aprendemos algo essencial: toda tradução é também uma forma de visão e de escuta. Uma visão do que se oculta em tudo que se mostra e uma escuta atenta ao ritmo, ao silêncio que distingue os sons. A tradução se faz possível à medida que preserva a poética das lacunas. Via do Meio seria, afinal, o nome apropriado para esse exercício? Entre o dito e o não-dito. Entre a raiz e os ramos. Entre Confúcio, Heráclito, Pound, Campos… e nós. Referências Bibliográficas Campos, Augusto de. Poesia da Recusa. São Paulo: Perspectiva, 1993. (Coletânea que inclui a tradução de Confúcio e reflexões sobre a tradução como criação.) Cassin, Barbara (Org.); SANTORO, Fernando; BUARQUE, Luisa (Comp.). Dicionário dos intraduzíveis – Vol. 1 (Línguas): Um vocabulário das filosofias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. Kinnucan, Michael. 2014. “Review of Dictionary of Untranslatables: A Philosophical Lexicon, edited by B. Cassin.” Asymptote Journal, julho. Acesso em junho de 2025. https://www.asymptotejournal.com/criticism/barbara-cassin-dictionary-of-untranslatables-a-philosophical-lexicon/ Pound, Ezra. The Confucian Odes. London: Faber and Faber, 1954. (Edição em que Pound sintetiza seu trabalho de recriação poética a partir do chinês, incluindo o célebre lema Make it new.) *Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)