Atlântida

Debruçados agora na luz de Maio, o Verão parece chegar sempre mais cedo na vertigem aquática, e nessa ânsia de seguirmos a sua bonança não nos damos conta daquilo que o mar nos conta nos confins da sua enigmática natureza. O mar é o movimento líquido que a terra expulsou dos seus domínios, e com ele vamos como que deslumbrados na primeira alvorada dos dias bons.

Milhões de pés se estendem na sua direção como um pêndulo por onde se deve seguir, que efectivamente ninguém lhe vira a cabeça. Poder-se-ia pensar que um banho de sol nos troca-se as voltas e mudássemos de posição, só que seria inconcebível uma imagem assim.

Sabemos hoje que qualquer distopia é de efeito continental, mas a utopia sempre engloba a ilha, no primeiro caso abrasa-se de soberba, no segundo, o mundo tende para uma fraterna igualdade «… aquela terra de suavidade que da orla esquerda do mundo se olvida…é a que ansiamos…» e o que é certo é que esta legenda cabe em nós como um distintivo e comanda de certa forma a orla de alguns em seus estranhos passos. Existem verossimilhanças que nos dão conta da lenda, como o Dilúvio, que Platão identifica mais tarde como sendo o impacto de uma destruição. Talvez se tivesse baseado numa longa tradição oral que partiu do Egipto e fora mais tarde adaptada em forma de poema inacabado, soltando-se uma data que intriga: doze mil anos, que coloca o Dilúvio no tempo onde hipoteticamente a Atlântida se afundou. Seja como for, o senhor do mito da Caverna esteve muito atento aos longínquos movimentos de uma consciência que nunca saiu das nossas quimeras. O facto de ser perdida, preenche o espaço das coisas que poderiam ter sido possíveis e deixámos perder, ou somente foram levadas, e que ao desaparecerem nos coloca num cosmos onde tudo é sonho, desabamento e lembrança.

Há uma estrela chamada Scheat que fica na constelação de Pégaso e que se encontra hoje na finalização de Peixes onde Saturno se lhe juntou, e não raro os mitos ligados aos mares afloram com intensa percepção neste ciclo neptuniano com uma longa memória comum diluviana, em certos momentos a altura das marés está entre as nuvens, e somos um grave efeito de uma lembrança que foge como aqueles vislumbres muito refinados que nem a vista alcança.

Neste plano muito cósmico, civilizador e quase inefável, o indivíduo é um elemento inexistente, não há ninguém que nos fale de um só dos seus habitantes nem das hierarquias, mas fala-se desses atlantes como de uma dimensão quase paralela que habitou a Terra e onde alguns afirmam terem sido salvos do desastre – que todos no mundo procuram as marcas de um quebranto marítimo, e todas as suas descrições são válidas, e toda a busca uma estrada em que andamos de pé sobre as águas. Este filtro onde a ânsia da verdade se esconde é um estímulo que deixámos partir e que chamamos utopia. Ela será um elemento imprescindível para capturar a rede de união ao redor do mundo e enfraquecer os atributos geofísicos dos quintais de alguns que se acham distantes de outros e de cada um.

Desde os Pilares de Hércules a uma imigração para a Gália, para a América, até às ruínas Maias, esta legenda participativa está em todo o terreno onde a humanidade adere a uma estranha raiz comum e dela cria o mito mais longevo. Certifiquemo-nos ainda do impacto literário e vejamos como o domínio criativo foi o que menos se absteve de o lembrar: o Império Russo retoma o tema em dois de seus poetas no fim do século dezanove, Frederick Tennyson, poeta inglês, na música, Manuel de Falla, e a ainda a pintura de Léon Bakst, e seria um trabalho de Posídon enumerar todo o espectro artístico deste legado que muitos creem ser mais hiperbóreo… talvez, afinal são os povos do Norte os que sempre seguram a Atlântida por brumas inimagináveis, mas será sempre Fernando Pessoa que estará nas profecias do mito dando-lhe contornos que ninguém viu. É um poema que começa assim:/ Não sei se é sonho, se realidade, se uma mistura de sonho e vida/ aquela terra de suavidade que da orla esquerda do sul se olvida/ É a que ansiamos/ Ali, ali/ a vida é jovem e o amor sorri. (…) Felizes, nós? Ali, talvez, talvez/ Naquela terra, daquela vez/

A liberdade cria-se e recria-se na grande marcha do tempo, e se a desejarmos como a uma água límpida devemos ir sempre mais longe e mais fundo, que ela é catástrofe redentora. Talvez que esta ânsia de ver o mar e estar com ele não passe de um desejo baptismal para os corpos sadios dos escravizados, e essa Atlântida desconhecida um fragmento perdido que nunca imaginaram.

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