O coveiro da democracia

Aí está ele! De mão no peito e no pescoço. A desfalecer. Com as televisões todas a cobrir o dia inteiro o trajecto das ambulâncias que o transportava. A aparecer na Praça do Município lisboeta de ligaduras no punho e pensos nos braços, a fingir que chorava à boa maneira bolsonarista e trumpista.

Eis, o coitadinho, que merecia o voto dos analfabetos da política, ou melhor, de todos aqueles que não pensaram se não num Messias que salvará Portugal dos corruptos, dos imigrantes e dos ciganos. De seu nome André Ventura, conseguiu captar os descontentes com os partidos da governação em 51 anos de democracia e obter uma votação inacreditável que nenhuma sondagem alguma vez alvitrou. Ventura está na maior. No caminho de coveiro da democracia.

O Chega ficará certamente como o partido principal da oposição, já que tudo indica que os votos dos emigrantes na Europa e fora da Europa irão oferecer dois deputados à AD e dois ao Chega. As eleições mostraram, efectivamente, tudo o que temos escrito aqui ao longo dos anos: o descontentamento da classe média, os salários baixos, as pensões de miséria, as escolas com chuva a entrar no seu interior, os jovens sem casa e a emigrarem, os médicos e enfermeiros mal pagos, os agentes policiais com esquadras que mais parecem pocilgas, os idosos sem lares dignos, os pobres sem poder de comprar os medicamentos não comparticipados, os transportes a abarrotar e com passes caros, o IRS a aumentar, os subsídios de renda a serem retirados a mais de 80 mil pobres, as grávidas a terem os filhos em ambulâncias, as consultas e cirurgias a demorarem meses e, algumas anos, a inexistência de habitação social ou de renda acessível, a violência doméstica a aumentar e os prevaricadores a serem mandados em liberdade. Todos estes factos têm sido salientados nestas crónicas e foram todas estas as razões que levaram ao aumento no voto num partido neofascista. Como foi possível que o Alentejo e Algarve sempre socialista e comunista fosse parar às mãos do Chega? Pelo descontentamento que grassa na população portuguesa.

O Chega até venceu em Algueirão-Mem Martins, nos arredores de Lisboa, onde a grande maioria de moradores é constituída por empregadas domésticas e funcionários públicos de nível hierárquico inferior que se levantam todos os dias às cinco horas para apanhar um comboio para o trabalho, quando não há greve. Foi este fenómeno do descontentamento com os governantes do PSD e do PS que levou muita gente que não é racista, não é xenófoba, não é pedófila, não rouba malas, a votar no Chega. Votaram eleitores que antes colocavam a cruz no PSD, no PS, no PCP e até no Bloco de Esquerda. Uma amiga nossa do BE transmitiu-me que votou no Chega porque nunca perdoará a Mariana Mortágua ter despedido funcionárias do partido que estavam grávidas. E, por isso, assistimos à queda enorme do BE que fica com Mortágua apenas no Parlamento e com sintomas de em próximas eleições desaparecer do hemiciclo.

Quanto ao “hecatombo” do Partido Socialista já se esperava. Um partido que optou por esquecer os jovens, que se transformou num feudo anti António Costa, que tem mais de seis facções no seu interior a degladiarem-se, obviamente que teria de cair na desgraça. Com mais ou menos reflexão, com um novo qualquer secretário-geral, irá demorar muitos anos a levantar-se do chão, se não lhe acontecer o mesmo que ao partido socialista francês. Votos socialistas com familiares a viver com dificuldades foram para o Chega. Votos socialistas anti Pedro Nuno Santos foram para o Livre.

Quanto à AD, que foi levada ao colo pelas televisões, está a cantar uma grande vitória. Qual vitória? Aumentou um pouco o número de votos e nem sequer consegue ter a estabilidade normal para governar. Das duas, uma. Ou se alia ao Chega, ou aguarda que o pequeno grupo parlamentar socialista lhe aprove o programa de governo e o orçamento do Estado. As vozes já se fizeram ouvir, tristemente, nas hostes pêpêdistas. Hugo Soares e Paulo Rangel já deram o mote de que em muitas propostas irá existir uma coexistência com o Chega.

Os portugueses não pensaram duas vezes. Embriagaram-se com as promessas de Ventura que nunca poderia cumprir, em face de Portugal não ter dinheiro para que os seus desideratos fossem para a frente e votaram numa criatura que já teve o desplante de dizer que “Ainda não viram nada” e “Irei ser o futuro primeiro-ministro”.

Ventura é antidemocrático, apenas quer alterar a Constituição, retirar da Constituição a palavra “socialismo”, quer retirar todos os subsídios e as casas às comunidades ciganas, retirar, à laia de Passos Coelho, o subsídio de férias e de Natal, proibir que nas escolas haja educação sexual, que os polícias actuem a matar, de preferência negros porque é um racista puro e quer, essencialmente, que os imigrantes que estão a “aguentar” a Segurança Social sejam expulsos de Portugal, à boa maneira trumpista.

A democracia portuguesa corre perigo. Não agora. Mas sim, nas próximas eleições legislativas, se os partidos democráticos não se convencerem que têm de se unir para defender um regime conquistado com muita luta, prisões e deportações de homens antifascistas. Ventura só tem em mente mudar o regime e ser o coveiro da democracia, de forma a poder continuar a receber os parabéns de toda a extrema-direita da Europa e EUA. Ventura – se os portugueses não abrirem bem os olhos e se os governantes não começarem a resolver os problemas de sobrevivência da maioria -, irá para chefe do executivo e a tragédia neofascista será uma realidade em Portugal.

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