A Nova Rota da Seda e o Princípio da Conectividade (segunda parte)

Ana Cristina Alves, Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

15 de abril de 2025

Na sequência do artigo do início de abril de 2025, recorde-se que a Nova Rota da Seda nasce em 2013 por iniciativa do atual presidente chinês, Xi Jinping, tendo sido anunciada no Cazaquistão, inicialmente com os seis corredores terrestres, mais tarde com uma Rota da Seda Marítima e muito recentemente com uma outra via marítima, a Rota da Seda Polar, com o propósito de conectar a Europa, a África e a Ásia e, afinal, também o resto do mundo.

Lembremos ainda que segundo especialistas em relações internacionais e geopolítica, como o Professor Carlos Gaspar, o surgimento da Nova Rota da Seda, com o seu imenso poder de conexão além-fronteiras, faz parte de um percurso claro da China, que vai ascendendo paulatinamente a grande potência, primeiro a nível estatal, depois em termos económicos e, ultimamente, no domínio internacional.

O poder de conectividade chinês parece plenamente assumido e confirmado pelo vice-presidente do Instituto de Relações Internacionais Contemporâneas, Yuan Peng, na teoria dos Três anéis ou círculos concêntricos, que constituem a esfera relacional da China: o anel interior dos 14 países vizinhos; o anel intermédio que se estende do Pacífico ao Índico e se embrenha na Ásia Central e o anel exterior que engloba a África, a Europa, a América e os dois polos.

Coloca-se a questão de saber, na sequência das palavras do Professor Carlos Gaspar, se a detetada conectividade política, cultural, económica e tecnológica não pressupõe a existência no pensamento filosófico chinês de um princípio da conectividade e, em caso afirmativo, em que filosofias estará mais ativo, ou se atua nos mesmos níveis em todas as correntes filosóficas.

Concluiu-se a primeira parte do artigo, referindo a importância da filosofia confucionista na Nova Rota da Seda, já que este é o softpower filosófico que acompanha o crescimento da rede comercial chinesa. As ligações dos chineses com o resto do mundo estabelecem-se na base de princípios confucionistas solidamente ancorados na tradição chinesa, que remonta ao século segundo a.C, quando o Confucionismo se transformou na ideologia oficial do Império Chinês pela mão de Dong Zhongshu (董仲舒,179-104 a.C) , sustentando e justificando uma meritocracia não apenas no interior da China, mas também por todo o mundo a que os chineses chegaram e chegam. Assim, são as Cinco Virtudes Constantes (五常Wǔcháng): Humanidade (仁 Rén) , Justiça (义 Yì), Ritos(礼Lǐ), Sabedoria(智Zhì) e Confiança (信 Xìn), que permitem ancorar, por um lado, a política diretamente na ética, viabilizando um bom governo para todos os chineses na base de virtudes constantes, por outro, os próprios contactos sociais, dentro e fora da China, são guiados pelas virtudes confucionistas em nome de um futuro harmoniosamente compartilhado. Na filosofia confucionista, está-se, portanto, ao nível de uma conectividade ético-moral, que viabiliza relações sociais harmoniosas, sendo a face visível do princípio da conectividade.

O princípio em apreço poderá assumir outras facetas se a ótica se dirigir para filosofias proporcionando explicações cosmológicas e ontológicas da existência, como é o caso da filosofia taoista. Aqui o princípio da conectividade desloca-se da sociedade para a ontologia e cosmologia. Todos os seres sem exceção estão ligados a uma mesma raiz donde emanam, nunca perdendo a capacidade, quer de se diferenciarem, quer de transformarem uns nos outros, ou de se unificarem com a fonte donde brotam, como somos informados pelo alegado patriarca do Taoismo, Laozi (老子), no capítulo VI do Livro da Via e da Virtude, cujo texto em chinês se pode encontrar na tradução da obra realizada por António Graça de Abreu (2013:38):

 谷神不死

 是谓玄牝

 玄牝之门

 是谓天地根

 棉棉若存

 用之不勤

Que gostaria de traduzir do seguinte modo:

O Espírito do Vale nunca morre,

Ao qual se chama fêmea misteriosa,

As aberturas desta fêmea misteriosa

Chamam-se a raiz do Céu e da Terra,

Existindo ininterruptamente,

Sem nunca se esgotarem.

Todos os seres vivos estão ligados a uma mesma raiz, donde brotam incessantemente através do Céu e da Terra. Emergem, diferenciam-se, aproximam-se uns dos outros e podem regressar à origem, caso se esvaziem do “ter” para iniciarem o movimento de regresso que poderá conduzir à reunião total, como nos é explicado no capítulo XL (Abreu, 2013, 106):

反者道之动

弱者道之用

天下万物1生于有

有生于无

Que traduzo do seguinte modo:

O regresso é o movimento do Tao,

O Tao pratica-se pela flexibilidade,

Tudo o que existe nasce do ter,

O ter nasce do não ser.

É então pelo esvaziamento, pelo “não ter” que se regressa à origem, mas enquanto se tem, também se é, e se vai mantendo relações, tanto mais próximas do Tao quanto mais flexíveis forem. Coexistimos em inter-relação num entendimento que escapa à linguagem, sendo absolutamente intuitivo, só ele pode explicar que os seres saiam ilesos de determinados relacionamentos, à partida muito negativos, porque se mantêm flexíveis e tão vazios quanto possível. Saber viver, na base desta interligação constante, é uma virtude em si que obtém como recompensa o prolongamento da energia da vida, como se percebe pelo seguinte excerto do capítulo L do Livro da Via e da Virtude (Abreu, 2013, 126):

盖闻善摄生者

陆行不遇兕虎

人军不被甲兵

兕无所投其角

虎无所措其爪

兵无所容其刃

夫何故

以其无死地

Segue-se a tradução concordante com a de Graça de Abreu (2013,127)

Ouvi dizer da pessoa que sabe viver,

Ao viajar por terras distantes

Não se cruza com tigres nem rinocerontes,

Não será ferido por militares,

Os rinocerontes não lhe conseguem espetar o corno,

Os tigres não lhe conseguem espetar as garras,

Nem os soldados têm capacidade para lhe espetar as espadas.

Por que é esta pessoa assim?

Porque não tem espaço para morrer.

Na verdade, aquele que cultiva a vida é, de acordo com a filosofia taoista, simples, leve humilde, bastante vazio, flexível, pelo que não oferece nem espaço nem resistência aos outros, o que normalmente sucede com feitios complicados, pesados, cheios de si, rígidos. Então essa pessoa está na situação ideal para criar boas relações não apenas com as outras pessoas, à maneira confucionista, como ainda com toda a natureza, ao jeito taoista. Os outros animais, por mais ferozes que sejam, reconhecem-lhe a santidade, e os outros humanos, ainda que estejam bem preparados para a guerra, como é o caso dos militares, não têm vontade de o fazer, porque não encontram qualquer ponta de agressividade ou resistência nesse ser.

Estas ontologia e cosmologia inteligentes e comunicantes estendem-se a toda a natureza, em rede, através do exercício e cultivo das virtudes corretas, que no caso do Taoismo são a compaixão, a frugalidade e a simplicidade, como nos é comunicado no capítulo LXVII do Clássico da Via e da Virtude (Abreu, 2013, 161), tendo sido amplamente desenvolvidas por Zhuangzi (庄子)2 e Huainanzi (淮南子) 3 .

Em Zhuangzi, além dos exemplos mais conhecidos como “Zhuang Zhou4 sonhou que era uma borboleta” (庄周梦蝶)ou a “alegria dos peixes” (鱼之乐), há outros como o “barco vazio” (虚船), que indicam a maneira correta de se estar em rede na existência, como um barco sem ninguém ao leme, a fim de que quando outro barqueiro vem na nossa direção em rota de colisão, não haja resposta possível, mesmo que se seja insultado (a) por o nosso barco ter ido inadvertidamente contra o dele (Zhuangzi, 1999, 322-323), ou “quando o sapato se adapta”, e é certo que o melhor sapato é sempre aquele mais velho e confortável, quando o pé já deixou de sentir a resistência do material rijo e novo, que incomoda e por vezes deixa bolhas e até o pé esfolado e em carne viva.

Acompanhe-se a emblemática história de Zhuangzi, aqui traduzida por mim (1999.313):

工倕旋而盖规矩,指与物化而不以心稽,故其灵台一而不桎。忘足,履之适也;忘腰,带之适也;知忘是非,心知适也;不内变,不外从,事会之适也。始乎适而未尝不适者,忘适之适也。

O artesão Chui era melhor a desenhar círculos do que os que usavam régua e esquadro, os seus dedos transformavam, sem que ele prestasse atenção, movendo-os com grande agilidade e à-vontade, tal como se esquece o pé quando o sapato se adapta; se esquece a cintura, quando o cinto se adapta e se esquece o certo e o errado quando o coração se adapta. Quando nos adaptamos ao mundo exterior não há transformação interna, nem obrigatoriedade externa. Estar-se adaptado, sem o sentir, esquecendo-se mesmo de o estar, é a verdadeira adaptação.

 A pessoa virtuosa taoista é supremamente bondosa, tal como o água, que é a imagem do bem supremo nesta filosofia, como se sabe pelo capítulo VIII do Livro da Via e da virtude (Abreu, 2013, 43). A água é descrita como dando vida a tudo o que existe, correndo livre por toda a parte, dado o seu excelente poder de adaptação. Pode-se dizer que se está perante um “darwinismo existencial” avant la lettre, que é cultivado com simplicidade e afabilidade, virtudes constitutivas da pessoa chinesa tradicional, à qual se juntam, na dimensão social, todas as outras virtudes confucionistas, a começar pela Humanidade e Justiça, passando pelos Ritos e Sabedoria que culminam na Confiança. Uma pessoa que cultivou o seu carácter, para os taoistas de um modo quase inconsciente, para os confucionistas de uma maneira deliberada e concentrada, obtém como recompensa uma ligação essencial à vida, colocando-se na rede existencial na posição certa para ativar a Ressonância Universal (感应gǎnyìng), que nos vem do Taoismo, nomeadamente de Huainanzi (淮南子), cuja dimensão espiritual é muito forte e será complementada pela filosofia budista que religa todos os seres através da imagem da teia de Indra, a divindade das forças naturais que protege e nutre a vida, tendo pendurado no seu palácio no monte Meru uma teia de fios de seda que nos une a todos à semelhança de uma teia de aranha, estendendo-se ao infinito e conectando em todas as direções. Cada um de nós é uma joia preciosa que reflete e é refletida, entrando em contacto com todas as outras por reflexão. E Buda acrescenta para o seu discípulo que estando todos interligados, há que cuidar muito bem uns dos outros.

Taoistas e budistas concordam nesta ligação ontológica misteriosa, baseada numa comunicação a um nível intuitivo, quase inconsciente, diretamente ligado ao coração-mente, no caso dos budistas, que facilitará por certo as relações sociais, sobretudo quando são justas, já que esta mesma ligação pode punir fortemente aqueles que exercem o seu poder pela força, por exemplo, na obra dos primórdios da dinastia Han, intitulada Huainanzi (《淮南子》Huáinánzǐ), tendo sido o sexto capítulo traduzido pelo sinólogo canadiano Charles Le Blanc, sob o título Huainanzi 淮南子 Philosophical Synthesis in Early Han Thought, com subtítulo The Idea of Resonance (Kan-Ying 感應) with a Translation and Analysis of Chapter six. Na primeira seção do capítulo VI, no episódio da rapariga do povo que se queixa aos Céus dos abusos do Duque Jing5 (京), despoletando esta queixa uma resposta natural devastadora que conduz à morte desse Senhor soterrado, após um tremor terra, nos escombros do seu pavilhão (Blanc, 1985, 103).

A Ressonância Universal enigmática viabiliza, se pensarmos em termos da teia budista equivalente ao Tao, Espírito do Vale, uma Ressonância Mútua (相应xiāngyìng), que para os taoistas como Huainanzi, depende da espontaneidade, também denominada por este filósofo “Pura Sinceridade” (精诚 Jīngchéng) (Blanc, 1985, 107). A ressonância pode ser relativa e mútua ou absoluta e universal quando se consegue alcançar uma resposta do próprio Tao, que, ao ser visto como um instrumento musical, é a nota que governa todas as outras (Blanc, 1985, 138).

A pessoa chinesa, que vem para o resto do mundo através dos vários corredores terrestres e marítimos da Nova Rota da Seda (新丝绸之路xīn sīchóu zhī lù) conectante do todo numa vasta rede, mais não faz do que reproduzir antigas metáforas e imagens advindas das diversas filosofias chinesas. Os chineses de hoje procuram as relações num mundo que postularam interdependente e ligado desde que iniciaram os seus esforços filosóficos, com registos físicos que remontam à mais alta antiguidade chinesa, mas que começam a ser organizados por volta do século VI a.C na escola do Mestre Confúcio [孔子(Kǒngzǐ), 551-479 a.C], sendo esta seguida de muito perto por outras escolas como a taoista e já na nossa era pelos diversos tipos de Budismo assimilados, acreditando muitos deles ainda nos nossos dias que o karma, as ações praticadas, serão determinantes na teia de Indra não só para o presente, como na teia das reencarnações futuras. E não esqueçamos que as ações são sempre em função de alguém ou de algo, sendo, portanto, a conexão essencial para a progressão na futura escala do ser, que conta em igual medida com as vidas passadas e a presente.

Por fim, os chineses, mesmo que não confessadamente religiosos, cruzadores de terras e navegadores de mares, à semelhança dos nossos compatriotas do século XVI, vêm negociar carregando uma herança cultural específica, que é preciso conhecer para não temer e que assenta no princípio da conectividade aos mais diversos níveis: cultural e filosófico, político e social, económico e comercial.

Referências bibliográficas

Abreu, António Graça de. 2013.《 道德经》 Laozi. Tao Te Ching. Lisboa.

Blanc, Charles Le (Org. e Trad). 1985. Huainanzi 淮南子 Philosophical Synthesis in Early Han Thought. The Idea of Resonance (Kan-Ying 感應) with a Translation and Analysis of Chapter six. Hong Kong: Hong Kong University Press.

Cutanda, Grian A. (Adapt.) 2018. “A Rede de indra. Budismo Indiano”. Histórias da Terra. Avalon Project. Disponível em: https://theearthstoriescollection.org/pt/a-rede-de-indra/, acedido a 15 de abril de 2025.

Gaspar, Carlos (2020) em O Mundo de Amanhã: Geopolítica Contemporânea. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Merton, Thomas. 1999. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes.

Qin Xuqing (秦旭卿), Sun Yongchang (孙雍长) (Trad Chinês Contemporâneo),Wang Rongpei() (汪榕培Trad. Inglês). 1999. Zhuangzi 庄子. Vol I e II. Hunan, Beijing, Hunan People´s Publishing House, Foreign Languages Press.

天下万物 (tiānxià wànwù) numa tradução literal é “as dez mil coisas debaixo do Céu”.

Zhuangzi [庄子 (Zhuāngzǐ), c. 369-298 a. C].

O Príncipe de Huainan, Liu An [劉(刘)安Liú’ān, 179?-122 a.C]

Zhou (周) é o nome próprio do filósofo Zhuangzi.

Duque Ching no texto, já que Charles Blanc não segue o alfabeto fonético chinês Pinyin, mas o sistema Wade-Giles.

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