Psicologia clínica | Os benefícios e riscos da introdução da IA

A inteligência artificial está aí para ficar e o seu uso no campo da psicologia começa a ser falado. Recentemente, o deputado Lam Lon Wai defendeu a sua utilização e, em Portugal, a Ordem dos Psicólogos criou a plataforma “PsIA”, que permite detectar sintomas. Nuno Gomes e Goreti Lima, dois terapeutas que trabalham com residentes, falam dos benefícios, riscos e potenciais usos da tecnologia

 

Perceber se emoções podem resultar em doenças do foro psicológico é algo que já é possível fazer com recurso à inteligência artificial (IA). O assunto começa a discutir-se em Macau ainda de forma tímida, nomeadamente através do deputado Lam Lon Wai, que em Fevereiro interpelou o Governo sobre a necessidade de aplicar ferramentas de IA em casos clínicos com jovens.

O HM falou com dois psicólogos clínicos que trabalham com residentes de Macau, de forma presencial ou à distância, sobre os benefícios e riscos de apostar na IA. Nuno Gomes, psicólogo numa clínica local, diz que a IA “é, para já, uma ajuda, e será sempre”.

“A IA é um processo irreversível e é inevitável que abranja todos campos da nossa vida, e neles está a psicologia e ajuda às pessoas. Mas venho de um campo da psicologia que é a Escola Humanista, que tem por base a relação com o paciente, e por isso não vejo grandes benefícios, para já, da utilização da IA, porque nas relações humanas a IA não entra”, defendeu.

Nuno Gomes acredita que a IA pode ajudar na fase de diagnóstico, embora pense que “o psicólogo vai ser sempre a personagem central”. “A IA pode ser uma vantagem em Macau para as pessoas que têm dificuldades em pedir ajuda. O uso da IA bem definido, até em termos éticos, poderá ser bastante útil para o início de uma terapia. Porém, neste momento não temos condições para o uso da IA ao nível de uma terapia mais completa e de fundo”, disse.

Nuno Gomes recorda ainda que para quem deseje falar com alguém, a IA “pode dar a sensação de que não estamos sozinhos e que está alguém do outro lado”. Trata-se de uma sensação que é ainda “estranha”, mas que “no futuro deixará de o ser, porque a IA vai fazer parte dos nossos dias”.

O psicólogo acredita que a IA “poderá funcionar desde que seja eticamente bem regulada, podendo ajudar em terapias breves, mas sempre como complemento de um processo maior”.

Goreti Lima, que já viveu em Macau, continua a fazer psicologia clínica à distância com residentes que vivem no território. É mais céptica em relação ao uso da IA, defendendo que a relação humana é sempre fundamental para um acompanhamento de qualidade.

“A terapia faz-se na relação e estas aplicações não contemplam isso. Acho muito bem que possamos utilizar a IA para diagnosticar, ver sintomas, mas isso também podemos fazer com um livro ou artigo. O ChatGPT já nos diz algumas coisas na área da psicologia, possíveis análises dos sintomas. A IA ajuda nesse processo, mas depois o resto funciona na relação terapêutica. É por isso que as pessoas gostam mais de um psicólogo ou outro. Depois há a questão ética, os dados são armazenados como? Vão para onde? As pessoas podem confiar?”, questiona.

Recomendações em Portugal

Numa interpelação escrita dirigida ao Governo da RAEM, o deputado Lam Lon Wai questionou se vai existir “cooperação” entre departamentos governamentais, empresas tecnológicas e instituições académicas locais no uso da IA na área da saúde mental. Porém, Goreti Lam lamenta que deputado “não fale na figura do psicólogo”.

“Os académicos têm uma experiência diferente dos psicólogos e terapeutas, que adquiriram essa experiência em termos práticos. Isso desenvolve-se ao longo do tempo. Todas essas questões têm de ser pensadas na hora de aplicar a IA. A IA pode identificar o que a pessoa tem e até técnicas a utilizar, mas depois há que ter em conta condições deontológicas. A avaliação tem sempre nuances consoante o contexto social da pessoa, e isso nunca é analisado na IA, ou então é de forma insípida”, acrescentou.

Portugal é um dos países onde a aplicação da IA na psicologia começa a ganhar alguma forma, ao ponto da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) ter criado a ferramenta online “PsIA”, que permite enunciar uma série de sintomas e chegar a um diagnóstico. Os dados pessoais parecem ficar protegidos com a introdução, no website, do número do Cartão de Cidadão, com a Chave Móvel Digital.

Além disso, a OPP criou um manual de boas práticas, intitulado “O factor humano na inteligência artificial – Recomendações estratégicas para a sustentabilidade”, que refere que existem “terapeutas virtuais que conseguem identificar, na comunicação com as pessoas, dificuldades emocionais que facilitam a educação psicológica deliberada”, além de potenciarem “a aprendizagem de técnicas e competências que visam, por exemplo, a redução da ansiedade”.

Além disso, o documento da OPP conclui que “alguns estudos sugerem que estes chatbots, desenvolvidos com base em modelos terapêuticos validados, podem ser eficazes na redução de sintomas depressivos e, inclusive, que algumas pessoas estabelecem com eles um vínculo semelhante ao de uma relação humana”. Porém, “estas evidências não se encontram consolidadas e questões relacionadas com a segurança (de pessoas e dados), a eventual dependência das tecnologias e a responsividade do apoio prestado face a diferentes dificuldades psicológicas não se encontram esclarecidas”, lê-se ainda.

Relativamente ao PsIA, é referido no website da OPP que “em questões muito específicas ou complexas não deve ser utilizado em tarefas que requeiram julgamento e avaliação especializados, análise técnica profunda ou aconselhamento profissional”. É ainda esclarecido que as respostas fornecidas baseiam-se “nos documentos e informações disponíveis” até ao dia 31 de Julho do ano passado, além de que a PsIA “não substitui de forma alguma o papel de um psicólogo ou de quaisquer actividades de supervisão”.

No caso de Hong Kong também começam a surgir algumas soluções, o que motivou, aliás, a interpelação do deputado Lam Lon Wai. É o caso da Hollo, uma aplicação de telemóvel desenvolvida em ligação com a Universidade de Hong Kong (UHK) e que pretende “tornar os cuidados com a saúde mental mais acessíveis aos pacientes, plataformas de serviços e organizações”.

A Hollo usa o poder da IA e tecnologias para levar práticas clínicas estandardizadas a um outro nível de produtividade, inteligência e conectividade digital. Segundo Cameron van Breda, CEO e co-fundador da Hollo, a empresa pretende ser “uma ferramenta facilmente acessível em momentos de stress, oferecendo análises e sugestões de amizade para melhores exercícios da saúde mental”. Em termos práticos, “foca-se nos jovens dos 12 aos 24 anos, funciona em inglês e chinês e introdu-los à terapia e práticas de aconselhamento através de actividades de ‘mindfulness’ e jogos diários”, lê-se no website da UHK.

Quase na mesma

Questionado sobre o panorama da saúde mental de Macau, Nuno Gomes entende que persiste “algum conservadorismo e desconhecimento não só naquilo que é a IA e as áreas onde se pode aplicar, mas também daquilo que a psicologia pode fazer”.

“A psicologia está cá para ajudar pessoas e no contexto de Macau não há ainda esse entendimento. Esse estigma impede muitas pessoas de procurar ajuda e a IA pode dar esse apoio. No entanto, a população mais velha desconhece ainda muito o funcionamento da IA, mas os mais jovens vão recorrer cada vez mais a este tipo de plataformas”, disse.

Em termos gerais, “o panorama da saúde mental pouco mudou desde a pandemia”, pois “no geral, as pessoas não sentem necessidade de expressar emoções e desde pequenas que são encorajadas a guardar as emoções, que quando são más e guardadas muito tempo, começam a fazer mal. As pessoas não sabem como exprimi-las por vergonha ou culpa”. Goreti Lima também entende que na área da saúde mental há ainda algum desconhecimento em Macau.

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