Os desesperados

Encontrei um homem com cerca de 60 anos de idade a vender a revista ‘Cais’. Iniciámos uma conversa e fiquei abalado. O senhor foi toxicodependente e sem-abrigo a dormir nas ruas de Lisboa durante anos. Foi identificado e enviado para um centro de recuperação da toxicodependência. Recuperou e passou a vender a referida revista.

Transmitiu-me o absurdo que vos quero relatar: há 15 anos que requer à Câmara Municipal de Lisboa uma habitação, nem que fosse uma casinha com apenas um quarto. Há 15 anos que obtém uma resposta que não reúne as condições para a concessão de uma casa. Tem vivido estes 15 anos sem qualquer privacidade e condições mínimas de qualidade numa casa municipal com a sua irmã. Contactámos as autoridades municipais e obtivemos uma resposta de que existem milhares de “desesperados” a solicitar uma casa. Milhares? E todos estes portugueses são a prova de que a Constituição portuguesa não é cumprida há décadas, cuja legislação diz que todo o cidadão tem direito a uma casa.

Continuamos a ver pelas ruas de Lisboa um número crescente de sem-abrigo. Muitos não são toxicodependentes. Quando dobram os cobertores que lhes foram oferecidos por pessoas sensíveis a este drama, caminham para um trabalho. É no local de trabalho que ingerem algum alimento, que se lavam e que fazem as suas necessidades. Mas trabalham e acabado o horário de trabalho regressam ao local onde têm alguns cartões no chão e os cobertores a marcar o lugar. Isto, é chocante.

O Governo fala demagogicamente em resolver o problema da habitação, mas o que temos visto é a autorização para a construção de condomínios de luxo. Onde está o uso dos muitos milhares de milhões de euros do PRR vindos da União Europeia? Onde está a construção de bairros sociais com dignidade, onde existam centros de saúde, correios, creches, supermercados e jardins infantis? Onde está o anúncio governamental da construção de casas de renda acessível para cidadãos sem residência e de baixos recursos financeiros? O partido Bloco de Esquerda ainda na semana passada, no Parlamento, requereu ao Governo que informasse qual o plano de habitação futura, algo que já solicitou várias vezes. Possivelmente não obterá resposta porque a preocupação do Governo é o aeroporto de Alcochete, é as várias vias férreas de TGV, é a cedência de terrenos baldios para a construção de condomínios de rendas impossíveis de serem pagas por gente pobre e é a privatização da TAP.

O país não pode continuar a fingir que não vê a realidade da falta de habitação para estudantes e para pobres. É urgente que tomemos conhecimento oficial da construção de quantas habitações com o fim de serem cedidas a arrendatários de baixos recursos. Viver na rua é doloroso, é chocante, é desumano, é injusto, é ilegal e é acima de tudo uma falta do cumprimento da Constituição. O Governo não pode continuar a aceitar que centenas de oportunistas explorem estudantes universitários e fujam ao fisco. Existem centenas de casos em que esses indivíduos têm uma casa de sete quartos, com duas casas de banho, e seis estão alugados a estudantes ao preço de 500 euros cada, ou seja, têm um rendimento mensal líquido de três mil euros sem passar recibo.

O Orçamento do Estado insere milhões de euros para acções supérfluas e isto não pode acontecer. Primeiramente está o nível de vida decente dos portugueses, muito antes de enviar milhões de euros para a Ucrânia. Os “desesperados” são aos milhares e aguardam que lhes seja dada uma casa há mais de uma década. Ministros e autarcas não têm vergonha desta situação? Não lhes dói o coração ao saberem que os seus semelhantes dormem na rua? As autoridades governamentais vivem com a consciência tranquila ao saberem que milhares de portugueses precisam de uma casa e nada fazem para resolver o problema? Muito recentemente num bairro de Lisboa foi inaugurado um edifício de quatro andares com várias fracções em cada piso. Uma construção de qualidade. Quando os alicerces tiveram o seu início nós próprios dirigimo-nos à edilidade lisboeta para nos inscrevermos e requerermos pertencer à possibilidade de obter nesse edifício uma fracção, já que tinha sido anunciado pela edilidade que o referido edifício seria para rendas acessíveis. Terminou a obra e o edifício está ocupado por moradores que entram na garagem do prédio com carros de topo de gama, como BMW, Tesla e Volvo. Os amigos leitores acham que as fracções foram concedidas a lisboetas com baixos rendimentos? Não. Segundo as nossas fontes, foram residir para o prédio em questão somente amigos de alguns directores da Câmara Municipal. Neste sentido, nunca os pobres irão ter uma casa minimamente digna.

Em Julho do ano passado, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, anunciou que Lisboa tinha 3378 pessoas em situação de sem-abrigo na cidade e que dessas, 594 não tinham tecto. E em seis meses que, entretanto, passaram, quantas casas foram construídas para todos esses cidadãos? Na altura, Moedas fez-nos rir de assombro quando adiantou que a edilidade iria “gastar cerca de 70 milhões de euros até 2030 com o aumento das vagas de acolhimento para sem-abrigo”. Até 2030? Isto, é gozar com o pagode. Sete anos para arranjar “vagas de acolhimento”? Uma média de 10 milhões de euros por ano? Sejamos sérios e realistas e indagamos o que é que se constrói com 10 milhões num ano? E é este mesmo edil que na semana passada teve a preocupação imediata de arrasar com Alexandra Leitão, assim que a mesma foi anunciada como candidate do Partido Socialista à Câmara Municipal de Lisboa, titulando-a como uma política radical muito próxima do Bloco de Esquerda. Obviamente, que enquanto um edil se comportar como apoiante de um Governo, não existirá a preocupação de construir casas para pobres. E os “desesperados” que continuem à espera que uma casa caia do céu…

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