Pode um historiador prever o futuro?

Uma leitura sobre a vidência em Sima Qian

Por André Bueno

No Shiji de Sima Qian, há uma passagem que adoro citar. É retirada da biografia de Zhang Liang [Shiji, 55], um dos grandes heróis que lutou contra Qinshi Huangdi e ajudou a fundar a dinastia Han. Ela nos conta que Zhang era um espécie de ‘predestinado’ a ajudar na elevação de Liu Bang [primeiro imperador de Han] ao poder, e a revelação de seu potencial se dá em um encontro de contornos místicos, que reproduzo nessa longa passagem adaptada:

“Um jovem nobre decadente, chamado Zhang Liang, andava perdido pela China, pensando num meio de acabar com o imperador Qinshi Huangdi. Ele já havia realizado uma tentativa anterior, inteiramente fracassada, e estava totalmente desolado. Qinshi parecia ser inexpugnável, e nada indicava que a situação pudesse mudar. Foi então que, num belo dia, depois de muito vagar, Zhang Liang foi atravessar uma ponte, e deparou-se com um velho, que havia deixado cair seu sapato no rio. Zhang, educadamente, prontificou-se a buscá- lo. Quando trouxe o sapato, o velho chutou-o pra longe e pediu novamente Zhang para pegar. Zhang ficou irritado, mas controlou-se e foi atrás do sapato de novo. Quando o trouxe, o velho simplesmente fez voar o calçado para ainda mais longe, e insistiu que Zhang fosse atrás do dito. Numa história normal, Zhang, ou qualquer outra pessoa, achariam que aquele senhor estava fazendo uma brincadeira de mau gosto ou debochando de sua cara. Mas, como Zhang era um predestinado, de características especiais – e contra a lógica usual destas situações – ele foi atrás do sapato do velhinho, pegou-o e o trouxe de volta. Ele estava de cabeça quente, mas controlado; foi o que permitiu que ele reparasse que o velho estava com uma aura estranha de autoridade, um brilho incomum, e de pronto modificou sua atitude. O ancião agradeceu a gentileza, e disse a Zhang que ele era uma pessoa especial. Pediu que dali a cinco dias o encontrasse num lugar convencionado, para dar-lhe um presente. Zhang ficou atiçado e curioso, e foi ao encontro do senhor dias depois. Quando lá chegou, o velho o esperava e gritou com ele: “Porque se atrasou tanto? Você é um grosseiro mal educado. Deixou um velho esperando! Volte daqui a cinco dias!” Zhang quase saiu do esquadro de novo, mas segurou-se. Voltou cinco dias depois, bem mais cedo do que antes, e encontrou o velho lá apenas para apanhar outra bronca e ouvir: “volte daqui a cinco dias!”. Devem ser nestes momentos que os heróis mostram sua obstinação. Talvez por curiosidade, ou por que não tinha nada melhor, Zhang decidiu fazer diferente. Foi quase um dia antes no lugar marcado e ficou esperando. O velho chegou, sorriu-lhe e disse: “paciência e disciplina, agora sim. Este é o caminho”. Deu-lhe um livro e continuou: “Você será o mestre do novo imperador daqui a dez anos. Daqui a treze anos, nos encontraremos de novo perto da margem norte do rio Chi. No pé do monte Guqian haverá uma pedra amarela: serei eu”, e desapareceu. Ele nunca mais foi visto. Quando terminou este encontro estranhíssimo, Zhang Liang olhou o livro que havia ganhado, e percebeu que se tratava de um tratado militar desconhecido. O livro parecia ser simples, e aparentemente combinava os textos de Taigong com os de Sunzi e de outros autores. Ele dividia-se em três partes apenas: as estratégias superiores, medianas e inferiores. Por causa disso, ele acabaria sendo chamado de ‘As três estratégias’, e para evitar confusões, a tradição chinesa o salvou como As três estratégias do duque da pedra amarela” [Bueno, 2011: 111-113].

No melhor estilo Ariano Suassuna – “não sei como foi, só sei que foi assim” – Sima Qian nos conta toda essa história sem enfatizar qualquer crença especial em sua veracidade. Como historiador, ele reproduzia uma narrativa conhecida; afinal, Zhang foi um personagem real, e se não foi ele a difundir essa lorota, não fez nada para desmenti-la. Mas ao mesmo tempo, Sima precisava defender – até certo ponto – que os especialistas no passado conseguiam, de alguma maneira, explicar o presente e determinar o futuro por meio do seu conhecimento. Isso implicava dizer que os historiadores tinham que lidar com a ideia de que algumas pessoas eram especiais, dotadas de uma tendência, propensão ou destino que lhes garantiria um papel especial na história. Ao mesmo tempo, os especialistas em história deveriam saber ler essas tendências e inferir o desfecho de certos acontecimentos. Não é preciso muito para entender que sustentar essa ideia sempre foi um problema. Como explicar, por exemplo, que Qinshi Huangdi era uma pessoa especial, se seu governo foi marcado pela crueldade? E como ainda explicar que a natureza [Tian, o Céu] o entronizou? Do mesmo modo, Liu Bang, o futuro fundador de Han, se destacava por qualidades bastante peculiares. Ele olhava torto, era displicente com a aparência, andava mal ajambrado, mas tinha uma barba bonita, nariz a testa grande, e setenta e duas verrugas na perna. Dava esmolas e tinha a mente aberta. Quando ia pra taverna, ela enchia de gente, todos ficavam felizes e pararam de cobrar fiado dele. Depois que casou, durante um ano inteiro, todos os dias, ele procurava sua esposa, e a fazia ter orgasmos antes de sair pra beber. Essas eram algumas de suas qualidades notáveis. Sim, isso tudo está na biografia de Liu Bang [Shiji, 8] descrita por Sima Qian. Seguem-se uma série de sinais auspiciosos como voos de dragão, emanações de energia, entre outras coisas fantásticas. Como inferir que Liu Bang era um predestinado, senão por sinais celestes misteriosos, que só seriam compreendidos depois?

Obviamente, isso é a reprodução de uma narrativa do passado. Contudo, como dissemos, os historiadores chineses antigos tinham que opinar sobre as tendências do mundo, sobre os acontecimentos e as questões de governança. Ainda que essas descrições fossem esvaziadas de uma carga de realidade [algo como ‘acredite se quiser’], por outro lado, elas serviam de escopo para comprovar a autoridade daqueles que alcançaram o poder [quer dizer, às vezes seria preciso acreditar nelas…]. Zhang Huawei [2017], em um instigante ensaio sobre a visão de destino em Sima Qian, mostra como esse conceito tornou-se objeto de uma complexa discussão acerca do papel previdente do historiador. Em retrospectiva, a ideia de ‘destino’ [Tianming 天命, empregada aqui de forma sinonímica com a nomeação imperial cosmoecológica dos soberanos chineses antigos] foi eventualmente usada para justificar as impressões do passado, bem como de seus personagens. Isso poderia significar que haveria algum tipo de justiça deontológica, uma ordenação natural das coisas ou ainda, uma fundamentação moral para a existência de uma trajetória de vida previamente definida.

Os chineses, no entanto, sempre buscaram escapar de uma visão pré-fixada das coisas. Existiam três razões para supor isso:

A primeira estava fundamentada no ciclo da mutação, apresentada no Yijing [o Tratado das Mutações], o primeiro livro de ciências da história chinesa. O Yijing explicava simbolicamente o ciclo perene da natureza e suas tendências, e por essa razão, tornou-se também [no imaginário chinês] um oráculo capaz de predizer, sugerir ou aconselhar sobre o desfecho das coisas. Mas – e justamente por isso – os chineses acreditavam que se o livro podia oferecer explicações sobre o curso de determinados acontecimentos, então, eles não seriam fatais, e consequentemente, poderiam ser modificados. A predição do Yijing indicava se algo era favorável ou não; então, o consulente poderia mudar de opinião e investir em uma atitude ou conduta diferente, alterando o curso da situação. De forma paradigmática o Yijing, portanto, tornou-se o primeiro oráculo do mundo que apenas aconselhava, mas que também deixava claro que o desfecho do futuro cabia ao indivíduo [Bueno, 2015]. Veremos que isso será crucial na interpretação de Sima Qian.

O segundo aspecto é a genealogia da cultura, proposta por Confúcio desde o Lunyu [Diálogos]. Em uma de suas passagens, ele afirma que ‘Shang sucedeu Xia, assim como Zhou sucedeu Shang. Sabemos o que se perdeu e o que foi acrescido. Quem suceder Zhou fará o mesmo, já sabemos como será’. A partir desse ponto de vista, o movimento de sucessão das coisas na mutação seria gerido por regras éticas e históricas, ligadas a reprodução e transformação da cultura. Visto assim, haveria algo que se preserva [essencial] e o que se transforma diante das necessidades do tempo [Bueno, 2011b].

É aqui que Sima Qian insere um terceiro elemento, a razão ecológica. Em sua visão, os movimentos sociais e políticos acompanhavam a ciclo da mutação em suas variações e movimentos naturais – como anteriormente apregoado pelo Yijing e por Confúcio – mas reinterpretado pela teoria dos cinco elementos, associação essa defendida por seu mestre Dong Zhongshu. Assim, ‘Xia foi madeira; Shang foi metal; Zhou foi fogo; Qin foi água; Han é terra’. As transformações do mundo seguiriam o movimento Wuxing, e por conseguinte, poderiam ser previstas em escala macrocósmica. Isso atendia ao seu propósito de ‘estudar a relação entre o céu e o homem, e compreender as mudanças nos tempos antigos e modernos’ [Shiji 130]. Assim, os movimentos da natureza – e de forma correlata, da humanidade – poderiam ser previstos e determinados em suas tendências fundamentais.

A articulação desses elementos na formulação de uma teoria de presciência revela o quão problemática era a tarefa de Sima Qian. A redação do Shiji estava envolta em compromissos políticos e ideológicos, com os quais ele teve que lidar amargamente ao longo da vida. Embora estivesse claro que sua proposta era valorizar a trajetória histórica de sua civilização, Sima era obrigado também a lidar com as tensões da escrita que envolvia as disputas de poder e as vaidades da corte [Jiang, 2018]. Nesse sentido, é possível que os personagens notáveis do passado possam ter sido moldados, na escrita das narrativas, para serem figuras prescientes; mas admitir isso significava, igualmente, reconhecer a possibilidade da previsão histórica no presente.

Isso deslizava para outro problema: a relação entre os tempos antigos e hodiernos. Li Bo [2014] analisa como Sima Qian estava plenamente ciente de que era um autor do presente falando sobre o passado, e reinterpretando-o dentro das possibilidades das fontes e das orientações ideológicas de sua época. Segundo Li, Sima fazia história do tempo presente, mas desejava entender e reconstruir as camadas da civilização chinesa em uma genealogia, fundando sua cultura no passado. Neste sentido, a presciência seria uma faculdade inviável de ser realizada, já que só poderia ser inferida a posteriori.

Após listar uma série de exemplos pinçados do Shiji, Zhang Huawei, afirma que ‘Resumindo, os pensamentos de Sima Qian sobre o destino incluem tanto a sua crença no destino como as suas dúvidas sobre a justiça do destino. Sima Qian duvidou da justiça do destino, mas não negou a sua existência. Quanto aos acontecimentos que podem ser explicados pela ação pessoal, Sima Qian também atribuiu grande importância ao papel do pessoal e opôs-se a confundir destino com pessoal. Estes estão de acordo com a intenção criativa de Sima Qian de “estudar a relação entre o céu e o homem” sob diferentes aspectos e refletem a sua crença no destino’. Essa conclusão aponta opiniões, mas parece ficar em cima do muro. Ou seja; Sima Qian não deixara de acreditar que poderia haver predestinados ou prescientes; e por tabela, não desejava abrir mão da faculdade de poder ‘inferir o futuro’ por meio dos estudos eruditos, mas precisava lidar com os perigos de errar as predições e conselhos. Melhor seria deixar isso nas mãos dos oráculos; mas esses mesmos oráculos, assim como as pessoas, podiam mudar de opinião!

Uma leitura que pode nos ajudar a compreender as intrincadas reflexões sobre esse problema é o seminal texto de François Jullien sobre ‘situação e tendência na história’ [Jullien, 2017]. Na interpretação de Jullien – alicerçada por comentaristas chineses – a questão central é como a situação ou contexto de uma narrativa são determinadas por suas ‘tendências’, ou seja, pelas forças que atuam para o andamento do episódio em questão. Isso significa que a predição sobre um acontecimento pode ser aferida, em um complexo jogo de espelhos teóricos, a partir de ressignificação de um evento histórico, de acordo com alguma das grades de leitura filosóficas defendidas pelo historiador. Posto de outro modo: um confucionista pode defender que um dado episódio foi bem sucedido pela presença de agentes morais que conduziram as coisas á um desfecho adequado – e nesse caso, a presciência invoca o uso da tradição como guia para afastar-se dos erros. Já um legalista poderia arguir que o mesmo episódio não teria sido bem sucedido, já que uma decisão calcada no passado pode simplesmente não ser adequada para os dias de hoje. Teremos um então uma infindável diatribe de exemplos e contraexemplos que irão colocar em julgamento se alguém era predestinado ou não, e se o historiador foi capaz de perceber isso ou não. A história, assim, não é conclusiva.

Talvez por isso Sima Qian tomasse cuidado em defender a vidência histórica como uma condição sine qua non do historiador. Perturbados constantemente pelas ingerências de figuras do poder, e agenciados com fundos imperiais, os historiadores chineses viviam na delicada corda bamba entre falar a verdade, aconselhar com juízo, e correr o risco de perderem suas cabeças se não atendessem as vontades de seus financiadores. Visto assim, a escolha de personagens especiais do passado poderia ser tão arbitrária [e seus atributos tão fantasiosos] quanto às inferências sobre o futuro poderiam ser carregadas de erros estratégicos quando o historiador estava cerceado de sua liberdade de pensamento. Esse conflito iria fazer com que uma rica tradição de histórias privadas [ou, histórias alternativas aos discursos estabelecidos pela agência imperial] surgisse, provendo a China de uma valiosíssima e diversa tradição historiográfica [Richter, 1987; Beja,1997]. Quanto aos historiadores chineses, esses aprenderiam a duras penas [depois de observarem a indigna condenação de Sima Qian] que se eles podiam prever algo, deviam primeiro observar a própria sorte, antes de emitirem juízos sobre o passado, o presente e inferir algo sobre o futuro.

Referências

Os textos do Lunyu e Shiji foram retirados do livro Textos da China Antiga. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2023. Essas fontes estão disponíveis em: https://chines-classico.blogspot.com/p/biblioteca-textos-da-china- antiga.html

Beja, Flora B. ‘El precio de la rectitud. El intelectual como crítico en la China tradicional’ in Los intelectuales y el poder en China / Taciana Fisac (comp.), Madrid: Trotta, 1997: 27-44.

Bueno, André. A arte da guerra chinesa. Projeto Orientalismo, 2011a:111-113.Bueno, André. ‘Não invento, apenas transmito’: Re-interpretando a escrita historiográfica de Confúcio. In: X Semana de História Política da UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, 2015. v. 1. p. 251-261.

Bueno, André. ‘O tempo das dinastias’ in Ensaios de Oito Partes. Projeto Orientalismo, 2011b:23-25.

Jiang Tianyue 姜天越. 《司马迁政治思想探究》. 神州·中旬刊, n.12, 2018.

Jullien, François. A propensão das coisas: por uma história da eficácia na China. São Paulo: UNESP, 2017: 223-281.

Li Bo李波. 《司马迁的古今观》. 渭南师范学院学报n.6, 2014.

Richter, Ursula. ‘La tradition de l’antitraditionalisme dans l’historiographie chinoise’. In: Extrême-Orient, Extrême-Occident, 1987, n°9. La référence à l’histoire. pp. 55-89.

Zhang Huawei张华伟. 《浅议司马迁的天命观》. 青年文学家 n.9, 2017.

André Bueno é Prof. Ass. História Oriental da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Este artigo saiu na revista Oriente 24 – Estudos Chineses

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários