A sensibilidade trágica perdida dos Estados Unidos (I)

“Americans have forgotten that historic tragedies on a global scale are real. They’ll soon get a reminder.”

Hal Brands

Os Estados Unidos deixaram de imaginar a catástrofe, no meio da introversão popular e da tranquilidade da classe dirigente. O declínio do pensamento estratégico foi substituído por teorias hiper-racionais. O moralismo da juventude e a cultura popular niilista em que tudo pode ser dito sobre os Estados Unidos nos últimos trinta anos, excepto que mantiveram uma abordagem estratégica equilibrada. Pode mesmo dizer-se que fizeram o contrário.

De que outra forma pode-se definir a destruição da classe média (rejeitada com há sempre vencedores e vencidos), o envolvimento crónico em guerras intermináveis, a pretensão de ocidentalizar a China, a ilusão de antagonizar a Rússia sem pagar o preço, a extensão descuidada dos compromissos face a uma contracção consciente dos meios? Como foi possível negligenciar a tal ponto uma visão prudente e clarividente? E porque é que a América parece hoje paralisada?

Concentramo-nos aqui num factor entre muitos, mas raramente observado. Desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos deixaram de pensar em termos trágicos. De imaginar uma possível catástrofe. De prever as consequências mais devastadoras das suas acções e omissões. De agir com sentido de proporção. A sensibilidade trágica é uma caraterística essencial do pensamento estratégico. “A arte de governar não pode ser praticada na ausência de perspicácia literária”, escreveu Charles Hill, um mestre e veterano da diplomacia americana. A literatura e a tragédia fornecem lições cruciais sobre como manter uma comunidade saudável. Cultivam uma forma de sabedoria que é o oposto do cinismo, porque mantém unido o peso da força e da indignação perante a injustiça. Dão elasticidade mental para apreender as condições da história, fundidas na realidade e não em teorias abstractas.

Alimentam o método geopolítico, com o seu confronto com as razões de cada um. Contam histórias que são também úteis à população, para compreender e legitimar os dilemas dos poderosos ou para os criticar responsavelmente. Estas lições não são agora ouvidas. Três gerações após a última guerra mundial, os americanos já não vivem a morte e a devastação em grande escala. A memória das catástrofes anteriores está a definhar. A classe intelectual e política tem dela apenas um conhecimento académico, formal e preciso, e também frio, sem humanidade e empatia. Qualidades que se obtêm através dos clássicos. Educação, no entanto, cada vez mais negligenciada nas universidades e na cultura popular.

Uma condição comum nas suas premissas a muitos países ocidentais, mas única nas suas consequências. Porque, se não for corrigida, a ausência de sensibilidade trágica pode causar os cataclismos que a América já não consegue imaginar. A amnésia da tragédia suscitou um debate limitado mas influente na América. Segundo alguns, o problema é a população. Esta imagina o presente como eterno, dá por garantida a base geopolítica da sua prosperidade e tem relutância em sacrificar sangue e tesouros. Para outros, a falha é da classe dirigente. Aplicou de forma irresponsável a supremacia dos anos 1990-2000 e corroeu a solidez da República, as fontes de poder e a credibilidade, e por conseguinte a capacidade de dissuasão, dos Estados Unidos. Para os primeiros, o pecado original é o da negligência; a introversão. Para os segundos, o pecado original é o da arrogância; a extensão excessiva. O debate gira em torno de dois volumes recentes como “The Lessons of Tragedy: Statecraft and World Order” de Hal Brands e Charles Edel (2019) e “The Tragic Mind: Fear, Fate, and the Burden of Power” de Robert Kaplan (2023).

Ambas obras são de íntimos do poder. Mas muito diferentes, não só pelas teses quase opostas que defendem. Kaplan, de 72 anos, é um famoso repórter de guerra dos Balcãs e do Médio Oriente, um apoiante irredutível da invasão do Iraque, um amante da geografia política (chama-lhe geopolítica) e autor de estudos para o Pentágono. Brands e Edel, ambos na casa dos 40 anos, sempre educados em Yale no altamente selectivo programa de grande estratégia do historiador John Gaddis, pertencem à nova geração de intelectuais. O primeiro, Hal Brands, titular da cátedra Henry Kissinger na Johns Hopkins e editor do texto de referência “The New Makers of Modern Strategy: From the Ancient World to the Digital Age”. O segundo, Robert Kaplan, reservista da Marinha e figura de proa do emblemático Centro Segurança Internacional e Estudos Estratégicos. Para ambos, uma passagem de dois anos pelos gabinetes de planeamento dos Departamentos de Defesa e de Estado, em meados da década de 2010.

Para Brands e Edel, a tragédia é a catástrofe. A tragédia é o medo da catástrofe e a sua função é educar os cidadãos para os interesses estratégicos da comunidade. Para os gregos, escrevem, “o teatro e outras representações dramáticas eram educação pública. As tragédias serviam para admoestar e aterrorizar os cidadãos e para os inspirar. As elites acreditavam que Atenas só poderia ascender a grandes alturas se o público compreendesse o abismo em que se poderia afundar sem grande esforço, coesão e coragem”. A melhor definição deste papel estaria nas “Rãs” de Aristófanes. Por que razão admirar os poetas, pergunta Ésquilo a Eurípides; resposta é que “Para o juízo sábio, para o conselho correcto para que possamos converter os nossos concidadãos ao bem”. As virtudes da tragédia, estabelecem os autores, citando a “Retórica” de Aristóteles, residem na arte da persuasão, na prontidão para o sacrifício, ao aceitar a autoridade do Estado para preservar a ordem da desordem.

Embora reconheçam que o teatro grego incutia lucidez e humildade no público, insistem no seu apelo à força e determinação comuns. Mesmo numa peça como “Os Persas”, em que Ésquilo faz com que o público se solidarize com a queda do inimigo, salientam a sugestão do autor de que a vitória de Atenas não foi mérito de heróis individuais, mas de uma comunidade unida capaz de evitar os erros de cálculo do adversário.

Segundo Brands e Edel, a trágica perda de sensibilidade da América reside no fracasso da vontade popular de defender o império. Algo está quebrado nos Estados Unidos, pois os cidadãos já não querem pagar os custos inerentes ao papel de garante da ordem. Mas, ao fazê-lo, deitam tudo a perder, porque o “Número Um” não pode fazer menos sem induzir um colapso mais geral. A base deste afastamento remonta ao fim da Guerra Fria em que a população exige e obtém uma redução de algumas despesas do império para se concentrar na frente interna; entretanto, a classe intelectual e empresarial convence-se de que a globalização é a lei e o destino da humanidade, a natureza dos seres humanos está a mudar para melhor, a guerra é coisa de arquivos e o sistema internacional sustenta-se mesmo sem a América (John Ikenberry).

(continua)

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