PolíticaO imperador e a escritora. Sem olhos em Gaza. Carlos Coutinho - 15 Nov 202415 Nov 2024 No seu leito de morte, o imperador Adriano ainda escreveu ou ditou um poema, talvez o último da sua vida irrepetível: Animula vagula blandula Hospes comesque corporis Qua nunc abibis in loca Palidula, rigida, nudula Nec, ut solles, dabis locos. Ou seja, em português de lei: Pequena alma terna flutuante Companheira e hóspede do corpo Agora se prepara para descer a lugares Pálidos, árduos, nus Onde terás mais dos devaneios costumeiros. (Tradução da historiadora Letícia de Andrade) Andei anos até saber quem era o autor destes versos e nem a Marguerite Yourcenar, aquela extraordinária escritora belga que foi viver para os EUA e pertence ao grupo dos meus imprescindíveis teve a caridade de dizer. Mas em “De Olhos Abertos” disse a Matthieu Galey: “Quando se ama a vida, eu diria sob todas as suas formas, tanto as do passado como as do presente – pela simples razão de que o passado é maioritário, como diz não sei que poeta grego, sendo mais longo e mais vasto do que o presente, sobretudo este estreito presente de cada um de nós –, é normal que se leia muito. Por exemplo, durante anos li a literatura grega, às vezes de uma forma mais intensa, durante longos períodos, ou ao contrário, aqui e ali, viajando com este ou aquele filósofo ou poeta grego na bolsa. No final, reconstruí a cultura de Adriano: sabia mais ou menos o que Adriano lia, a que é que se referia, a maneira como olhava certas coisas através dos filósofos que lera. Não disse a mim própria: ‘Preciso de escrever sobre Adriano e informar-me acerca do que ele pensava.’ Julgo que nunca se chega lá desta maneira. Acho que temos de nos impregnar de um assunto por completo até que ele saia da terra, como uma planta cuidadosamente regada.»” Depois da morte do pai, em 1929, Yourcenar decidiu gastar a herança numa vida de boémia, passada entre Paris, Lausana, Atenas, as ilhas gregas, Constantinopla, o Cáucaso e Bruxelas. Teve relações amorosas com algumas mulheres e apaixonou-se por um homossexual, André Fraigneau, escritor e editor da Grasset. Em 1939, o seu conhecimento da Alemanha nazi e a falta de recursos levaram-na a partir para os EUA, juntando-se a Grace Frick, sua companheira havia dois anos, e com quem viveu até à morte desta, em 1979. A partir de 1950, instalou-se com Grace na ilha de Montes Desertos, designando a sua casa em madeira por “Petite Plaisance”. O que lhe permitiu deixar a sua atividade docente foi o êxito internacional de “Memórias de Adriano” (1951). Em meados dos anos 60 visitou Lisboa, Sintra, Évora e a Madeira. Antes de falecer, a 17 de dezembro de 1987, ainda escreveu para sempre “A Obra ao Negro”. Está enterrada no Cemitério de Brookside, em Somerville, no Maine, EUA. Já de Adriano eu apenas sabia que teve um amante chamado Antino e, quando este se afogou no Nilo, em 130 d.n.e., ficou por se saber se ele caiu nas águas do rio, se cometeu suicídio ou se foi empurrado, mas, depois da sua morte, Adriano imediatamente o declarou um deus e fundou em sua memória a cidade de Antinópolis, no Egito, no local onde o cadáver do seu namorado foi encontrado. Adriano nasceu provavelmente em Itálica, na Hispânia. Foi um imperador viajante, visitando quase todas as províncias e passando muito tempo longe de Roma. Era um amante da cultura grega e procurou fazer de Atenas a capital cultural do Império, ordenando a construção de vários templos sumptuosos na cidade. O seu casamento com Vibia Sabina, sobrinha-neta do Imperador Trajano, foi infeliz e não produziu filhos. Em 138 adotou Antonino Pio e nomeou-o seu sucessor. Faleceu no mesmo ano em Baías. Foi divinizado por Antonino, a despeito da oposição do Senado, que sempre o considerou distante e autoritário. Adriano tem suscitado opniões divrgentes entre os críticos, descrito como enigmático e contraditório, capaz tanto de atos de grande generosidade como de extrema crueldade, dominado por uma curiosidade insaciável, pelo orgulho e pela ambição. O renascimento do interesse contemporâneo pela sua figura deve muito ao romance “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar , publicado em 1951. A sua primeira viagem foi em 121, visitando a Gália, a Germânia e a Britânia, uma província agitada por rebeliões, onde iniciou a construção da célebre Muralha de Adriano, destinada a conter as invasões e migrações de bárbaros. Em Roma supervisionou a reconstrução do Panteão e terminou a sua ‘villa’ de repouso, em Tivoli. Caçou leões no deserto da Líbia e morreu em 10 de julho de 138, em Roma, depois de uma longa doença. O seu corpo foi depositado num mausoléu que veio a ser transformado no atual Castelo de Santo Ângelo, em Roma. * MUITO antes do “bom samaritano” que Lucas não nomeou, de Anne Frank, de Aristides de Sousa Mendes, de Ho Chi Min e de Mohammad Arafath, já Aristóteles perguntava: “Haverá flagelo mais terrível do que a injustiça de armas na mão?” De facto, antes e depois do jogo de futebol entre o Ajax de Amesterdão e o Maccabi Tel Aviv, ocorreu variado e abundante vandalismo que a nossa televisão não mostrou de um certo lado, o dos israelitas, e empolou do outro, o dos árabes ou originários de países muçulmanos. Vimos israelitas a entoar canções que enaltecem o comportamento das IDF (Forças de Defesa sionistas) na Palestina ocupada e arrancando as bandeiras palestinianas que iam encontrado na sua marcha por Amsterdão. Muitos de nós viram também “mouros” corajosos a retaliar de forma por vezes igualmente violenta. A Comissão Europeia condenou estes atos e ignorou a selvageria hebraica. Para Von der Leyen, a islamofobia pode ser um modo natural de respirar no mundo em que vivemos. Surpreendentemente, até em Israel, o “Haaretz”, um jornal visceralmente sionista, mas avesso a Netanyahu e ao pior de Biden, Harris e Trump, afirmava no dia de S. Martinho, em editorial, que o Exército israelita está a levar a cabo uma operação de limpeza étnica no Norte da a Faixa de Gaza” e que os poucos palestinianos no local estão a ser levados à força”. E mesmo que “foram destruídas casas e infraestruturas bem como há estradas largas a ser construídas para completarem a separação das comunidades do Norte das do Centro da cidade de Gaza!”. Completando o horror da situação, um residente local contava no mesmo dia a “The Washington Times”: “Antes comíamos erva, agora nem isso temos. A cidade é agora um cemitério.” E isto quando até em Israel, o “Haaretz”, um jornal visceralmente sionista, mas avesso a Netanyahu e ao pior de Biden, Harris e Trump, afirmava no dia de S. Martinho, em editorial, que “o Exército israelita está a levar a cabo uma operação de limpeza étnica no norte da Faixa de Gaza” e que os poucos palestinianos no local estão a ser levados à força” e que “foram destruídas casas e infraestruturas bem como há estradas largas a ser construídas para completar a separação das comunidades do norte das do centro da cidade de Gaza!. (…) Parece que foi atingido por um desastre natural.” E Lousie Waterige, responsável da UNRWA, o organismo da ONU que Israel nunca respeitou, disse neste fim-de-semana “não há maneira de dizer onde a destruição começa ou acaba. Não interessa de que direção se entra na cidade de Gaza. Casas, hospitais, escolas, clínicas, mesquitas, apartamentos, restaurantes, está tudo totalmente arrasado”. A cidade e tudo à volta parecem, de facto, “um cemitério em que as vítimas são, sobretudo, mulheres e crianças. Segundo um relatório publicado na sexta-feira pelo supracitado Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, estas “representam quase 70% dos mortos na Faixa Gaza”, uma análise feita com base em 8 119 mortes identificadas durante os primeiros seis meses de guerra. Ainda segundo este mesmo relatório, também citado por “The Washington Post”, cerca de 80% dos mortos estavam em casas ou outro tipo de habitação, dados estes que “dão peso às alegações de que Israel tem atacado indiscriminadamente”.