O futuro da memória (I)

“Politics is the mortar between the bricks of history.”

Elsdon Ward

A crise da história e a crise da memória são um perigo. A civilização europeia está carregada não só de história, mas também de um certo sentido histórico. O início da modernidade europeia, que se associaria ao declínio da sociedade feudal e ao advento dos Estados nacionais, assistiu à afirmação de duas categorias interpretativas e científicas, a política entendida como reflexão sobre uma técnica, isto é, sobre um instrumento necessário para ordenar a vida social (basta pensar em Maquiavel) e a história entendida como um instrumento de construção do presente, necessário para a legitimação dos Estados nacionais nascentes. Pelo menos até ao século XIX, o nascimento e o desenvolvimento dos Estados europeus eram indissociáveis da reflexão historiográfica. O objectivo foi sempre o de apresentar a comunidade de referência como solidamente ancorada nas suas raízes históricas. Figuras como Michelet e Thierry em França ou Ranke na Alemanha são exemplos de escola. Na modernidade, em suma, a história era parte integrante da política.

No século XX, em parte devido ao suicídio iniciado pelas nações europeias com a I Guerra Mundial, algo alterou. Em particular, o sentido estoico das nações europeias mudou, pois começaram a cortar os laços com o seu passado após os dramas do século passado. No coração da Europa há uma espécie de mancha negra, o nazismo, mas também os vários fascismos e, na Europa de Leste, os anos do comunismo soviético que ainda paira sobre a nossa consciência e identidade. Vivemos numa espécie de tempo sem história, dada a dificuldade em aceitar a crise que a nossa civilização viveu no século XX. É uma verdadeira crise de memória. Temos dificuldade em reconciliarmo-nos com o nosso passado. Um factor decisivo, frequentemente tematizado, foi então enxertado neste húmus cultural. O da mitologia americana da “city on a hill”. A ideia de uma civilização nascida sem pecado e baseada no desprendimento da “Velha Europa” tornou-se extremamente poderosa e atractiva para os Estados europeus, que tiveram enormes dificuldades em enfrentar as suas dramáticas vicissitudes.

Mas este mito, que descreve um poder hegemónico imaculado e acima das misérias da história, corre o risco de gerar nos americanos a ilusão de poderem viver uma vida meta-histórica, se não mesmo anti-histórica. Isto é extremamente perigoso, porque aqueles que não se preocupam com a história correm o risco de a repetir. Esta tendência pode ser observada actualmente. Vemos a olho nu como a história se está a repetir. O confronto do século XVIII entre a talassocracia britânica e o império russo revive hoje no terror anglo-americano de um poder terrestre que não estabelece fronteiras. E que, além disso, tem o defeito de ter os pés bem assentes na História, fundando-se desde o tempo de Pedro, o Grande em mitologias imperiais e religiosas que se reproduzem mesmo séculos depois. Como não pensar, por exemplo, na carga histórica presente nos grandes filmes de Serguei Mikhailovitch Eisenstein, tão importantes para mobilizar os russos na guerra contra os nazis?

No entanto, por muito anti-histórica que seja a América, é preciso ter em conta que os pais fundadores se referiam frequentemente ao império romano ou à cultura grega. De facto, esta prática era típica das revoluções do século XVIII. A questão é que esses mitologismos foram empregues mais por necessidade do que por qualquer outra coisa. Quando os pais fundadores se viram a fundar um novo mundo baseado na liberdade individual, não tinham simplesmente modelos, porque os Estados europeus estavam todos organizados hierarquicamente e por classes. O único modelo possível era o da liberdade republicana da Roma antiga, embora certamente reinventado e adaptado ao contexto. Durante o século XX, a anti-historicidade estrutural da América causou sérios problemas. Foi esta característica que facilitou o desenvolvimento da ideia, fundamentalmente oitocentista, de direito natural, segundo a qual a ocorrência de certas condições objectivas só pode ser seguida da realização efectiva dos direitos naturais e, em última análise, das condições necessárias ao desenvolvimento do Estado de direito e do capitalismo.

O erro foi acreditar que, na história universal, a democracia liberal e o sistema capitalista eram a norma e não a excepção. A democracia é algo muito raro e muito difícil de alcançar, enquanto o capitalismo surgiu de uma convergência de factores ideais, materiais e políticos que se combinaram num determinado momento na Europa e que poderiam muito bem não se ter combinado. Acreditar que para realizar o capitalismo e a democracia basta criar condições objectivamente adequadas ao seu desenvolvimento é uma enorme ingenuidade.

O capitalismo ou a democracia não podem ser ensinados numa secretária. Os políticos ocidentais e os homens do Banco Mundial que tentaram explicar aos russos o que era o capitalismo não conseguiram mais do que o sacrifício de uma ração genética e a imposição da autocracia de Putin que conduziu a restaurar autocraticamente a ordem no país, enquanto hoje tenta também restaurar a sua honra perdida com a invasão da Ucrânia.

(continua)

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