O colapso do Ocidente (II)

“Western nations are strongly advocating absolute Globalist universalism at the cost of themselves-pushing for a world where everything is mindless consumerism for the lowest common denominator and all virtue is condemned. Unchecked Social Capitalism dismantles any form of human other then a producer of labor and rampant technology alienates people from their religious and spiritual roots.”
Mikhail Bridgefell

 

Tão genuíno é o afluxo civilizacional que leva Rudyard Kipling a abençoar a empresa colonial britânica, enquanto a Companhia das Índias Orientais escraviza os colonizados. O universalismo é inerente ao Ocidente cristão, como a qualquer monoteísmo. Mais uma vez, com os destroços da União Soviética ainda a fumegar, surge a perigosa convicção de que o Ocidente é um destino inelutável, porque lhe faltam alternativas, logo desejável por todos e em todo o lado. Uma realidade meta-histórica que não admite excepções, mesmo na sua forma económica, o capitalismo na versão neoliberal que se afirmou nos Estados Unidos a partir dos anos de 1980 e no seu centro de irradiação, a América. A par do fatídico triunfo sobre a União Soviética, a dinâmica sino-soviética selou a globalização sob o signo da supremacia americana, na ideia de que a unificação produtiva e comercial era o viaticum de uma progressiva mas definitiva ocidentalização dos sistemas políticos, morais e culturais.

Assim, a 2 de Outubro de 2001, menos de um mês após os atentados terroristas, Tony Blair juntamente com Bill Clinton, talvez a figura política mais emblemática dessa fase arengava no Partido Trabalhista, em Brighton que “Há quem pergunte como pode o mundo ser uma comunidade? As nações agem no seu próprio interesse! Claro que sim, mas hoje os nossos interesses estão inseparavelmente ligados. Esta é a política da globalização. No mundo da Internet, das tecnologias da informação e da televisão, a globalização será cada vez maior. E no comércio, o problema não é o excesso de globalização, mas a sua insuficiência. A questão não é como parar a globalização, mas como torná-la mais justa. Porque a alternativa à globalização é o isolamento. É por isso que as nações do mundo estão a unir-se. Está a ser criada uma nova relação entre a Rússia e a Europa. E quando a Índia e a China tiverem desenvolvido suficientemente as suas economias, reconfigurarão o nosso mundo.”

Na altura, a administração Clinton e grande parte da elite político-económica americana acreditavam piamente que a economia podia redimir a política, consolidando a democracia liberal e corrigindo as trajectórias geopolíticas dos Estados. Washington imaginava a abertura chinesa como uma via de sentido único no sentido ideológico, o galope da China para a democracia; no sentido material, a abertura desse vasto mercado para garantir um enorme afluxo de recursos para a América, pivot do sistema financeiro e monetário mundial e, por isso, o único sujeito capaz de tirar pleno partido da expansão do paradigma capitalista. A da China era uma promessa composta por diferentes elementos, todos eles decisivos para empurrar Washington e Pequim um para o outro. Bens a baixo preço para sustentar o poder de compra do consumidor americano, corroído pela estagflação dos anos 1970-1980 e pela aplicação incipiente das teorias do “capitalismo accionista” de Milton Friedman, que privilegiavam a remuneração do capital em detrimento da do trabalho.

Um vasto mercado interno carente de quase tudo, porque ainda atrasado. O horizonte de um comércio bilateral com enormes receitas para as empresas americanas e, em perspectiva, ganhos para as congéneres chinesas, a serem transformados como já acontecia com o Japão em capital para financiar a dívida soberana dos Estados Unidos, o que aconteceu de forma crescente nos trinta anos seguintes. Desta dinâmica resulta uma vasta interdependência. Pequim depende dos Estados Unidos para as suas exportações e para apoiar o renminbi através de reservas. Washington depende da China para o fluxo de importações económicas que sustenta o poder de compra e os lucros das empresas, mas também para a colocação de uma dívida crescente com a qual compensa a risível taxa de poupança interna, que a partir dos anos de 1960 mas sobretudo a partir do final dos anos de 1970 entra em colapso devido à estagnação dos rendimentos médios e ao arranque do consumo privado.

Numa némesis histórica, a economia “Made in China” é para os trabalhadores americanos o que o ópio foi para os britânicos e para os chineses no século XIX, uma droga que amortece parcialmente a descida do nível de vida. Ao preço, porém, da dependência das mercadorias cuja produção foge da América, desindustrializando-a e alimentando o mal-estar socioeconómico se for entregue a um número cada vez maior de asiáticos. Chegamos assim, resumidamente, às crises gémeas dos últimos anos. Primeiro, a Grande Recessão de 2008, desencadeada pelo incumprimento maciço das hipotecas, que revelou à China a fragilidade crescente do sistema americano e a angústia da sua classe média endividada, em cujo consumo Pequim tinha apostado durante trinta anos. Depois a Covid-19, que recorda brutalmente aos Estados Unidos o peso, em muitos aspectos já excessivo, da (inter)dependência estratégica em relação a um país em cujas intenções, sistema político e práticas já não se pode confiar. Por fim, numa tempestade perfeita, veio a invasão da Ucrânia.

Tomada de surpresa, irritação e preocupação pela China, que temia com falsas suposições à partida a derrota completa da Rússia e o consequente reforço da contestada ordem americanocêntrica, a guerra acabou por cessar o estranho casal sino-russo. Acima de tudo, alimentou a inventividade para contornar os circuitos económicos, financeiros e regulamentares dominados pelos Estados Unidos, num esforço para escapar às sanções draconianas impostas a Moscovo. Desde 2022, segundo um relatório do Gabinete do Director dos Serviços de Inteligência Nacional dos Estados Unidos (ODNI na sigla inlesa) certificado no ano passado, a China “tem oferecido um apoio cada vez mais firme ao esforço de guerra russo, fornecendo a Moscovo tecnologias-chave para armas e equipamento utilizados na Ucrânia”. As indústrias de defesa estatais chinesas enviaram sistemas de navegação, peças de aviões de combate e outros componentes aos seus homólogos russos.

Em Março de 2023, a China tinha enviado drones e respectivos componentes no valor de mais de doze mil milhões de dólares para a Rússia. A China também aumentou drasticamente as suas compras de petróleo, gás e outros produtos energéticos russos, utilizando os seus próprios circuitos financeiros para permitir a Moscovo “contornar a proibição dos sistemas de pagamento ocidentais”, como o Swift. A China e a Rússia também aumentaram a parte do comércio bilateral realizada em yuans em Setembro de 2022, as exportações russas pagas em moeda chinesa tinham aumentado de 0,5 por cento do total anterior à guerra para 14 por cento, e desde então tem crescido ainda mais. As duas potências revisionistas que desconfiam uma da outra tanto ou mais do que desconfiam dos Estados Unidos, a China e a Rússia uniram-se, apesar de tudo, para minar a hegemonia americana, cujos valores rejeitam antes dos meios. Valores vistos como ameaçam à sua integridade territorial, aos seus sistemas políticos e aos seus interesses nacionais.

Neste desafio cada vez mais aberto, pretendem fazer incursões no ponto fraco da globalização centrada nos Estados Unidos, pois os muitos países que, cansados da lógica neocolonial mas demasiado fracos para desafiar as influências euro-americanas, se recusam a tomar partido e a abrir-se aos actores não ocidentais, principalmente Pequim e Moscovo. Isto inclui muitos Estados do Sudeste Asiático e da África do Norte e Subsaariana, mas também da América Latina. Os países maiores ou mais bem equipados, como a Índia, a Turquia e várias monarquias árabes do Golfo, estão a tentar criar perfis autónomos para não caírem de uma dependência para outra. O que emerge é uma globalização cada vez mais fragmentada, em que os vencedores económico-financeiros se confrontam com lógicas estratégicas divergentes e variáveis crescentes. Pequim e Moscovo jogam contra Washington, a Índia vê-se como o fiel da balança entre os Estados Unidos e a China, mas mantém uma relação importante com a Rússia, Ancara joga em todas as frentes, com um pé na NATO e outro fora, o Irão vence o cerco árabe-americano-israelita, tirando partido do “eixo da resistência”.

Entretanto, o Brasil, a Argentina e o México namoriscam com a China, desafiando abertamente a Doutrina Monroe, enquanto a antiga África francófona se volta para Moscovo para se libertar da tutela francesa. Em pano de fundo, a deslocação do fulcro demográfico mundial do eixo transatlântico para a Ásia e, em perspectiva, para África. Zonas cheias de problemas, tensões e traições, mas povoadas por regimes cujos traços autoritários, nesta fase, parecem muitas vezes ser benéficos para a coerência estratégica. Enquanto a opinião pública ocidental lamenta a inclusão das classes políticas sujeitas à compulsão do ciclo eleitoral, no Leste proliferam as “visões” programáticas. Visão 2030 para a Arábia Saudita e o Qatar, Visão 2035 para o Kuwait, Visão 2040 para Omã, Visão 2050 para os Emirados Árabes Unidos. Em deferência ao plano “Made in China 2025” (revelado em 2015), Pequim está agora a inundar o mundo com alta tecnologia barata sobretudo baterias, carros eléctricos, painéis foto voltaicos e rotores eólicos.

No imediato, para compensar, com um mercantilismo agressivo, o risco de rebentamento da enorme bolha imobiliária; em perspectiva, para assumir a liderança nas principais vertentes industriais. A grande limitação do decisionismo económico e, de um modo mais geral, do dirigismo mais ou menos paternalista que caracteriza estes sistemas, é que não admite a contradição e é hostil aos artifícios aleatórios, fruto da liberdade de pensamento, de empreendimento e de organização. Esta é talvez a seta mais afiada no arco das sociedades abertas, cuja efervescência é frequentemente confundida com anarquia fatal pelos seus adversários, mas também pelos seus defensores nas suas fases mais hostis. No entanto, a afasia estratégico-conceptual que caracteriza as grandes democracias ocidentais nesta conjuntura aumenta a sua incoerência e mina a sua credibilidade, mesmo e este é talvez o maior problema aos olhos dos seus cidadãos. Como todas as fases históricas, também esta tem os seus símbolos.

O assustador acidente que levou o porta-contentores Dali a derrubar a ponte Francis Scott Key, em frente ao porto de Baltimore, a 26 de Março, provocando o seu encerramento, custou cerca de quase dois mil milhões de dólares por dia em perdas de receitas, excluindo os danos directos. Isto deve-se ao facto de o porto se situar na foz da Baía de Chesapeake, um dos maiores estuários do mundo e a zona mais densamente povoada dos Estados Unidos. Na tempestade de controvérsia que se seguiu ao desastre, argumentou-se, entre outras coisas, que os navios porta-contentores daquela dimensão não deviam manobrar tão perto de infra-estruturas cruciais. Seria preferível que atracassem em portos menos problemáticos e, a partir daí, utilizassem o transbordo doméstico com navios mais pequenos. No entanto, nos termos do Jones Act de 1920, qualquer navio que transporte mercadorias entre dois portos americanos deve ser de fabrico americano por razões de segurança.

É pena que, após quarenta anos de deslocalização, a indústria de construção naval americana tenha atrofiado ao ponto de não produzir navios de guerra suficientes, quanto mais navios porta-contentores. Isto limita mesmo a circulação interna de gás liquefeito extraído por fracking (fracturação hidráulica), um trunfo estratégico importante nos últimos anos. Então, por que não permitir que o Japão e a Coreia do Sul, aliados dos Estados Unidos e actualmente entre os melhores construtores navais do mundo, tenham acesso ao mercado naval americano? Porque isso exigiria políticas claras e expeditas de friendshoring, ao passo que o recente veto da administração Biden (Março de 2024) à aquisição da U.S. Steel pelo grupo japonês Nippon Steel vai contra a estratégia de contenção anti-chinesa.

Não é que Washington repudie uma tal estratégia, mas a ausência de política industrial gera monstros. A América vê-se assim confrontada com grandes concentrações anti-concorrenciais em sectores-chave, em nome da segurança (ver Boeing e Starlink), mas sem uma visão que a liberte da escravidão dos fluxos de caixa trimestrais e dos interesses particulares, permitindo-lhe o planeamento a médio e longo prazo necessário às políticas industriais. Nesta confusão estratégica, que a América partilha com a maioria dos seus aliados europeus, insinua-se a desglobalização. Os protagonistas desta, reentrando na cena internacional após fases mais ou menos longas de esquecimento geoestratégico, não rejeitam o armamento económico-industrial que lhes é oferecido pelo Ocidente como instrumento de prosperidade e de poder. No entanto, orientam os seus meios para outros fins, para outros interesses. Com base em agendas que já não são “ocidentais”. Neste sentido, é muito provável que a globalização, tal como a conhecemos, tenha acabado.

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