Notas poéticas de uma visita ao Templo de A-Má

Por Cheong Kin Man

Chio Tong I (falecido antes de 1777) foi um homem de letras confucianista natural de Macau, descendente de Zhao Yanfang (Chio In Fong), que tomou posse como Mandarim de Hèong-Sán (hoje Zhongshan) em 1386. Argumenta-se que o imperador Taizong (939-997) da dinastia Song (960-1279) é um seu antepassado.

Passou uma vida modesta e deixou vários poemas em chinês clássico. Apelidado respeitosamente como “Senhor do Rio do Espelho”, o poeta só foi reconhecido quase um meio século depois da sua morte. No fim de 1828, o seu neto Chio Wan Sin, que exerceu funções na administração provincial, mandou gravar numa pedra do Templo de A-Má um dos poemas deixados pelo seu avô.

Eis mais uma tentativa de transpor um poema clássico chinês, desta vez com versos heptassilábicos, num texto dodecassílabo em português:

A terra vê a água, fim do sudeste

À procura do Zen, vi gemas no portal

Portas-Tigre, mil velas, um branco veste,

Em Pescoço-de-Galo, jamais é o sol mortal

Nas vias sinuosas, sapatos tiveste.

Colina esculpida, nome imortal.

Flores de ameixeiras, sob rochedo,

A primavera r’vem, sem saber mais cedo.

O título do poema é “Ascender ao Templo da Percepção do Mar no Mês do Sacrifício às Divindades” (臘月登海覺寺). Pondo-o numa tradução menos literal, aqui falamos de uma “Visita ao Templo de A-Má no Último Mês do Ano (Lunar)”. “Ascender”, porque não se trata de uma visita desierarquizada. É uma ida com respeito, provavelmente também com a intenção de homenagear as divindades. É, sobretudo, uma caminhada à Colina da Barra.

Neste artigo estudamos este relato poético cantonense com traduções literais de cada verso, a fim de mais aprofundadamente apreciar uma pitoresca paisagem de Macau do século XVIII. Revelamos algumas curiosidades, da toponímia cantonense analógica sobre os animais, ao uso metafórico da língua clássica chinesa, e daremos um salto a um género de sapatos antigos “flexíveis” feitos para as caminhadas.

Percepção do “mar”

Os dois grandes caracteres vermelhos “海覺” (Hoi-K’ok), que o Monsenhor Manuel Teixeira se referia como “Percepção do Mar” em português, estão gravados numa grande rocha dentro do templo.

O Templo de A-Má não é o único que tem a referência a “Hoi-K’ok” ou “Percepção do Mar”.

Um templo com o mesmo nome, mas fundado quase um milénio mais cedo do que o ex-líbris de Macau, na capital histórica da China, Chang’an, onde o mar não se vê, desperta em mim um outro significado ao ler estes dois ideogramas: “o estado de ficar infinitamente iluminado”.

Por sua vez, nos primeiros versos do poema que aqui lemos, está destacado um mar de Macau que o templo contempla:

地盡東南水一灣

嵌寶奇石向禪關

A terra vê a água, fim no sudeste

À procura do Zen, vi gemas no portal

[As terras terminam com uma baía de águas do sudeste

O tesouro inserido (no Templo), as (suas) extraordinárias pedras indicam a casa de guarda que acede à iluminação budista (Zen)]

O primeiro verso refere-se à localidade do templo. “Sudeste” é uma referência geográfica face a Hèong-Sán, sede do governo imperial (e provincial) chinês que tutelou Macau: a península é sita na direcção sudeste desta cidade chinesa.

O segundo verso tem referências mais metafóricas.

Compreendemos, aqui neste verso, que os dois caracteres 禪關 (sim kuan em cantonense ou chán guān em mandarim) são uma referência metafórica ao “acesso” ou “passagem fortificada” à “iluminação” religiosa ou espiritual. Nada tem isto a ver com uma fortificação, mas com o facto que a essência do Zen não é algo fácil de aceder.

Os mesmos ideogramas, parece-me que, podem indicar igualmente a entrada do templo.

Enquanto a magnificência do Templo de A-Má é constatável nos desenhos do quase contemporâneo do poeta em questão, George Chinnery (1774-1852), as rochas, muitíssimo referidas nos documentos sínicos e que ainda hoje vemos, verificam a autenticidade do segundo verso como uma descrição poética da vista e da arquitectura desse templo.

Topónimos e animais

虎門雪送千帆白

Portas-Tigre, mil velas, um branco veste

(Fu-Mun despede o tão branco de mil velas como neve)

Luís Gonzaga Gomes traduz, na primeira versão portuguesa da “Monografia de Macau” de 1950, que o topónimo Fu-Mun (ou Humen em mandarim, a 70 km de Macau) significa “Porta do Tigre” ou, como se constata ao ler os documentos históricos, é também conhecido em português “Boca do Tigre”.

“門” (pronunciado “mun” em cantonense) significa não apenas porta(s), mas também, como vemos na toponímia clássica chinesa, uma hidrovia estratégica.

O nome “Porta do Tigre” é algo abreviado de “Passagem da Cabeça do Tigre” (traduzida igualmente pelo grande sinólogo macaense). Ainda segundo a mencionada “Monografia de Macau”, as duas Montanhas do Pequeno Tigre (Xiǎohǔ Shān) e do Grande Tigre (Dàhǔ Shān), “parecem-se com duas pérolas incrustadas no seio do mar”. A tradição cantonense diz que estas duas elevações foram imaginadas como um tigre sentado, daí os nomes. Ambas as montanhas, que são igualmente os cúmulos de duas ilhas, testemunham, na observação poética do natural de Macau, a muita circulação de transporte fluvial do século XVIII.

Roda veicular: alusão ao sol e à lua

雞頸輪升萬壑殷

Em Pescoço-de-Galo, jamais é o sol mortal

[Em Pescoço-de-Galo, a roda (o sol) leve (e faz com que) vermelha uma miríade de vales]

No quarto verso, destacamos o caracter 輪 (lon em cantonense ou lún em mandarim), que significa efectivamente roda(s) de um veículo. Para além de ter o significado de sol no chinês clássico, este ideograma designa igualmente a lua (cheia).

Isso tem a ver, justamente, com a forma de uma roda “desenhada” na escrita mais antiga chinesa e vê-se mesmo no componente à esquerda do caracter: o radical 車 representa uma tal roda, embora esta, na escrita impressa moderna, tenha a forma de um quadrado.

É de notar que, quanto este ideograma visualizador foi inventado, o mais tardar no século XI a.C., a palavra tinha pelo menos duas rodas (redondas) nas suas diversas variantes, 䡛. Não foi até no Século VIII a.C., o mais tardar, que o caracter se foi simplificando, de com duas rodas a uma só roda.

O chinês moderno tem, apenas com algumas excepções, símbolos redondos. Entretanto, como a escrita chinesa evoluiu para uma escritura quadrilátera, o caracter 車, representando originalmente uma roda, naturalmente redonda, foi ganhando a forma de quadrângulo igualmente o mais tarde no Século VIII a.C.

Onde fica o Pescoço de Galo?

Continuamos o tema de nomes de animais na toponímia clássica cantonense. Aqui na tradução do poema, “Pescoço-de-Galo” é um antigo nome cantonense menos conhecido na língua portuguesa. Gonzaga Gomes explica literalmente o termo “雞頸”, Kài-Kèang como “Pescoço da Galinha” ou Kâi-Kêang como “Pescoço do Galo, ou da Taipa” – Sabemos que o ideograma 雞 (kai) não manifesta o género gramatical.

“Pescoço-de-Galo” é mais um exemplo de como os cantonenses denominam as localidades ao comparar as suas formas com as imagens de animais. É, segundo a tradição de Macau, uma elevação da ilha da Taipa que se localiza a este, ou melhor a desaparecida ilha que se integrou na Grande Taipa. Originalmente uma ilha à parte, “Pescoço-de-Galo” está ainda hoje nos nomes cantonenses de vários locais na Taipa.

A cena das “velas (vistas) de Pescoço-de-Galo” era conhecida, entre a comunidade cantonense, como uma das “dez paisagens” nomeadas pelo co-autor da “Monografia de Macau”, Iân-Kuông-Iâm (1691-1758). Aqui, nos terceiro e quarto versos do poema em causa, o autor Chio Tong I evoca o hoje desaparecido cenário de muitíssimos juncos que passavam pelas águas de Macau, num vermelho do amanhecer.

Numa Macau do século XVIII

迴磴人拖單齒屐,

摩崖徑勒有名山。

此來不覺春歸早,

笑指梅花試一攀。

Nas vias sinuosas, sapatos tiveste.

Colina esculpida, nome imortal.

Flores de ameixeiras, sob rochedo,

A primavera r’vem, sem saber mais cedo.

[Sinuosos caminhos de pedra! O homem usa sapatos de um só dente

Penhascos com (textos de) estudos gravados, vias com inscrições, a famosa colina tem

Assim, sem se reparar que a primeira cedo volta

Rindo, aponto às flores de ameixeiras, prova-se uma caminhada]

Cheong Mei I, vice-presidente da Associação da Literatura Moderna de Macau, e Tang Chon Chit, especialista local de mérito em matéria de poesia clássica cantonense, publicaram em 2020 um livreto em mandarim, “Inscrições em Pedra no Templo de A-Má de Macau” (título português constante na capa). A estudiosa, juntamente com o professor da Universidade de Macau, interpreta que Chio Tong I expressa uma certa identificação com a terra ao relatar o templo e os seus arredores com precisão.

No quinto verso, parece que o poeta sobe à colina com um tipo de calçado em madeira, possivelmente tamancos, com dois “dentes” – isto é – dois pedaços de madeira para manter os pés acima do solo. Referidos como chinelos de um só dente no poema, julgo que se trata de antigos calçados com estes dois “dentes” de colocar e retirar: ao subir, sem o pedaço de suporte de frente; ao descer, com a peça de atrás retirada. Explicando-o à minha companheira polaca Marta, ela diz, “eine tragbare Treppe (que uma escada portátil)!”

Relativamente ao sexto verso, sabe-se que o mero ideograma 山 (san em cantonense ou shān em mandarim) não diferencia entre colina(s) e montanha(s). Assim, este verso evoca em mim uma vastíssima paisagem.

O poema, que parece até agora inédito na língua lusa, é concluído pelos últimos dois versos cuja ordem inverti na tradução poetizada. Ao imaginar o muito apreciado passeio numa primavera simbolizada pelas flores de ameixeiras, fico perdido entre mil vales e num reino de signos, gravados nas pedras da deusa A-Má.

* Artista de desconstrução linguística, têxtil e vídeo em colaboração com Marta Stanisława Sala

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Artur Caldas
Artur Caldas
21 Jul 2024 03:12

Muito bom. Gostei. Um abraço de Parabéns.