O uso ilimitado da força (I)

“A ideia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um político é acreditar que basta a um povo ir armado a uma nação estrangeira para a fazer adoptar as suas leis e a sua constituição”

General François Lecointre

Em outro tempo houve uma guerra política contínua por outros meios. O que resta sem a política? A guerra autónoma, dirigida a si própria. Violência ilimitada. Irracional. Chamar-lhe-íamos besta se nas espécies animais não existissem hierarquias de dominação, de modo que a competição pela superioridade é geralmente resolvida por ameaças e não pelo exercício da força. Em rigor, deveríamos deixar de chamar guerra ao que há muito deixou de corresponder ao cânone estabelecido em 1832 por Carl von Clausewitz.

O seu tratado sobre a guerra, um tratado de antropologia e de arte da política em que as armas são apenas o seu instrumento, foi utilizado por gerações de oficiais, de tal forma que passa por um manual técnico de combate. É digno de figurar ao lado da “Fenomenologia do Espírito” do seu contemporâneo igualmente prussiano, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, só que lhe subverte o sentido porque não expõe a realização da história como um projecto divino, mas anuncia talvez inconscientemente a sua subversão.

A fractura que diante dos nossos olhos liquida a dimensão política da guerra, emancipando-a da primeira, reduzida a um estado larvar, produziu-se a partir da época napoleónica. O fim da “guerre en dentelles”, dos torneios em tributo regidos por uma etiqueta cavalheiresca de costumes, o início das mobilizações de massa e dos movimentos revolucionários que culminam no triplo suicídio das hegemonias europeias (1914-1945-1991). Hegel e Clausewitz estavam ambos em Jena, a 14 de Outubro de 1806, quando Napoleão derrotou o exército prussiano.

Clausewitz ficou prisioneiro daquele Bonaparte em quem Hegel, olhando pela janela, queria ver a alma do mundo a cavalo. Duas perspectivas fisicamente opostas, a do oficial que caiu nas mãos do inimigo experimentou o clima e os modos de um grandioso exército do povo, e depois passou de cobaia a investigador dessa revolução, que não era apenas militar; o filósofo demasiado sistemático para admitir as aporias que o impediriam de encerrar a sua dialéctica trinitária, viu em Napoleão o anúncio simbólico do desígnio de Deus ao afirmar “É uma sensação maravilhosa ver um indivíduo que concentrado num ponto, irradia sobre o mundo e o domina”.

Clausewitz rejeita, na introdução, a necessidade de reduzir as suas observações a um sistema, um sinal do destino, dado que não poderá terminar de corrigir a sua obra-prima: “Em vez de uma doutrina abrangente, temos apenas fragmentos para oferecer. Tal como muitas plantas não dão frutos se os seus caules forem demasiado altos, é necessário que, nas artes práticas, as folhas e as flores teóricas não se desenvolvam demasiado. É preciso não se afastar muito do terreno que lhes convém, isto é, da experiência. Talvez surja em breve um espírito mais esclarecido, que substitua estes grãos isolados por um todo fundido num só molde como um metal sem escória”. Clausewitz acabaria então por ser desviado pelas ciências militares e políticas. Até que um antropólogo e crítico literário muito original, René Girard, revelou o seu núcleo oculto. Uma fórmula que torna o seu pensamento actual, ou seja, a cisão entre política e a guerra. Clausewitz já a tinha, de facto, intuído, só que recuou quase temeroso perante a descoberta e assumiu o papel de técnico de armamento, decididamente diminuto. Eis a passagem-chave, que no texto precede o postulado, agora ultrapassado, sobre a relação política/guerra: “Confirmemos, portanto – a guerra é um acto de força, cujo uso não tem limites – os beligerantes impõem a lei uns aos outros; o resultado é uma acção recíproca que logicamente deve levar ao extremo”.

Girard lê neste fragmento a confirmação da sua tese sobre o mimetismo, retirada do estudo dos clássicos da literatura, de Cervantes a Proust e Dostoievski em que a imitação é o motor das relações entre os humanos na medida em que se reconhecem como semelhantes. Leva-nos a aprender, mas também a lutar pelo desejo do objecto do outro. Mais radicalmente, pelo desejo do desejo do outro. Daí a dinâmica da violência como um jogo de espelhos que torna os inimigos cada vez mais semelhantes. O uso ilimitado da força é um sintoma da “tendência ao extremo” que acelerou o curso da história desde o final do século XVIII. E determina uma continuidade do confronto bélico através da “acção recíproca” impulsionada pelo desejo mimético dos contendores. “Bump and grind”. Extensível ao infinito, por imitação na qual a violência chama a violência. Ao ponto de se perder o próprio sentido de defesa e de ataque, de agressor e de vítima. Exemplo, o “ódio misterioso” entre a França e a Alemanha que constitui “o alfa e o ómega da Europa”. Neste sentido, a Guerra é apocalíptica. Pois estamos sempre em guerra, uma vez que a guerra enquanto instituição capaz de produzir sentido e determinar equilíbrios de paz já não existe. Um fenómeno que, segundo Girard, afecta todas as instituições.

O que resta da política persegue a guerra como Aquiles, a tartaruga. A abolição determinativa da guerra é intencional. Aqui estamos interessados tanto no fim da guerra como no fim da paz. A ausência do primeiro exclui a paz. Para a conseguirmos, temos de saber porque lutamos e, sobretudo, com que objectivos os nossos adversários nos confrontam. É para isso que serve a geopolítica. Obriga-nos a contemplar o conflito a partir do alto (perspectiva de arbitragem) e, a partir daí, a descer por graus e escalas crescentes até ao terreno em disputa (olhar conflitual), medindo o que está em jogo – o objecto do desejo mimético – as intenções e os recursos dos protagonistas. O exercício geopolítico educa até ao limite. Refreia os impulsos mais imprudentes dos contendores, incluindo-os mimeticamente na mesma equação, em respeito pelo princípio da realidade. Prepara a paz. Exercício fora de tempo? Não pensamos assim. Pelo contrário, pensamos que compensa a “tendência para os extremos”.

Entusiasmado com o teatro de papel machê que pinta efectivamente o mundo inexistente das regras universais, eleva o não-direito internacional a direito. Uma receita para acabar com a guerra, sim, mas através de uma colisão definitiva capaz de erradicar a humanidade deste planeta. Quem tranquiliza não cura. Contribui para a catástrofe. Traduzamos a tendência para o extremo em geopolítica. O que é que ela nos diz, senão da ocidentalização do mundo, filha da Revolução Francesa? Desencadeadas pelas campanhas de Napoleão, desenvolvidas com as guerras do ópio britânicas, as empresas coloniais das potências europeias vestiram-se de civilização das raças inferiores, culminando na formação de um mercado mundial de bens e capitais sob a égide americana. Previamente antecipado em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels como o estigma da sociedade burguesa no “Manifesto do Partido Comunista” em que “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, logo as relações de produção, portanto o conjunto das relações sociais.

A incerteza e o eterno movimento distinguem a época burguesa de todas as anteriores. A necessidade de um escoamento cada vez mais vasto dos seus produtos impele a burguesia para o outro lado do mundo. Em todo o lado tem de se impor, estabelecer, constituir relações”. Se substituirmos “burguesia” por “Ocidente”, descobrimos a dinâmica geopolítica que se mantém desde então e cuja crise vivemos actualmente. A tendência para o extremo que deveria ter acabado com a história descarrilou das pistas economicistas engenhosamente traçadas pelos dois jovens renanos. Os estudos antropológico-culturais que se seguiriam à expansão colonial estavam a dar os primeiros passos. As raízes e as múltiplas funções das guerras modernas, estimuladas pela tecnologia, começavam a alargar o seu alcance. Para investir todas as dimensões competitivas das relações entre grupos humanos, o comércio como cultura, a força militar como esfera do direito, as finanças como desporto. Um processo do qual emana a miragem da ocidentalização do mundo como o fim (masculino e feminino) da história humana.

Descarrilamento da teleologia hegeliana. A ideia um tanto bizarra de universalizar o Ocidente, uma ofensa ao princípio de não-contradição, expõe os limites da tendência ao extremo que se pretende ilimitada. Síndroma de Clausewitz-Girard em que a ocidentalização da humanidade é tanto filha da imitação dos não ocidentais, consciente ou não, como do nosso beligerante impulso ecuménico. Não se trata de um movimento unilateral do centro do poder para as periferias impotentes, mas de um duplo movimento. Aproximação mútua em vista do duelo. As periferias procuram o centro, sobretudo quando não o admitem a si próprias, oferecendo alternativas a um paradigma que introduziram, tal como o centro visa as periferias. Dialéctica sem síntese possível, em aceleração contínua. Desalinhada. Se, em vez de avançar para o triunfo, a história marcha ao acaso ou em círculos, a tendência para o extremo radicaliza-se até ao paroxismo. E produz guerras potencialmente intermináveis. Num duplo sentido, sem objectivo e sem fim. Dançamos à beira do vulcão.

Estamos na era da proliferação das armas de destruição maciça, não apenas nucleares. É preciso um formidável acto de fé para nos convencermos de que milhares de bombas atómicas na posse de actores cada vez mais imprevisíveis e numerosos, lançadas a partir de vectores hipersónicos capazes de atingir o alvo em minutos e de tornar inabitáveis continentes inteiros são produzidas para os respectivos stocks. E o que dizer da fábula segundo a qual a inteligência artificial nunca será autónoma dos seus criadores? A tendência para o extremo perturba o cartesianismo dos estrategas de gabinete. Viúva da dissuasão, o “Ancien Régime” desmoronou-se com a demolição do Muro. Os historiadores, uma espécie em vias de extinção devido à abolição progressiva da disciplina, não estão muito melhor, pois o desporto do século é a marcha frenética a partir de um impasse. Sem passado, sem futuro, sem nada para fazer senão para consumo imediato. A improvável ocidentalização do mundo expande-se para a desocidentalização do Ocidente. Sobretudo, para a desocidentalização da América.

À força de exportar a liberdade e a democracia com guerras preventivas-educativas regularmente mal sucedidas e sofridas, se nalgum canto da nossa memória prezamos o princípio de que lutamos para vencer, quantos restam em casa? Se muitas democracias residuais são menos populares do que várias autocracias, porque é que os chineses ou os russos nos hão-de imitar? Talvez pensemos que uma campanha para libertar um povo de um tirano, ao estilo da invasão estrelada da Mesopotâmia, transformará de um momento para o outro o sujeito num fanático do modelo de Westminster? Prestemos homenagem a Thomas Friedman, o ideólogo do terrapianismo, a quem, num suspiro inconscientemente autocrítico, escapou a pergunta proibida: “O Iraque é como é hoje porque Saddam é como é, ou Saddam é como é porque o Iraque é como é?”. Por fim, quanto à globalização consensual de Washington, paradigma económico do Ocidente americano, o que fazer se uma grande parte do mundo discorda e se dedica cada um a acercar o seu próprio estilo de produção e de troca, para adaptações posteriores?

No entanto, no Ocidente, continuamos a conceber as guerras como o recurso último do progresso de que reclamámos a exclusividade. Cada vez mais fracos e menos convencidos, somos ainda prisioneiros de um síndroma do membro fantasma. Colaterais da tendência para o extremo, por definição avessos à reflexão. De medir a realidade e o lugar que provisoriamente ocupamos nela. Quase como se o Ocidente fosse uma categoria meta-histórica. E a guerra a parteira da história, dixit Marx, ocidentalizador não convencido. O hiato entre a ideologia e a correlação global de forças induz a depressão na América, que se identifica com o Ocidente como protectorado de confiança divina e comunidade de valores. Mas a profundidade da sua própria crise impede-a de abjurar a ideia universal de progresso que justifica a sua existência e promove o seu poder superior. A história não pode acabar em glória, é certo, mas a auto consciência fundadora sem a qual a América não existe pode confrontá-la com a alternativa do diabo que é a guerra civil ou a guerra mundial. Ou ambas. Em nome dos direitos humanos, mais vale suicidar-se com todo o planeta.

A aproximação à encruzilhada faz-se por um conflito sem objectivo nem conclusão. Alimentado pelo ilimitismo americano. E demarca os Estados Unidos e os seus associados das potências não ocidentais, onde persiste alguma forma de racionalidade, ainda que peculiar. A anti-estratégia em esteróides praticada dentro e à volta da Casa Branca exprime a “geopolítica para as classes médias” que o “Estado Profundo” em confusão postula inspirar-se. Anátema aos olhos dos hiper-capitalistas estrelados, para quem nem o céu é o limite. Pensemos em Elon Musk e Jeff Bezos, o segundo e o terceiro homens mais ricos da Terra, que imaginam exportar a humanidade para além deste planeta, um lugar demasiado estreito para nós. Podemos acabar de o destruir e começar a colonizar o universo. Musk quer-nos em Marte. Bezos eleva a fasquia pois triliões de seres humanos flutuarão em enormes estações espaciais no espaço interplanetário. Tudo se pode esperar do homem (Musk) que foi castigado pela História por ter gerado uma filha comunista e do seu rival que, em criança, treinou o seu talento tecnológico instalando um alarme eléctrico para impedir os irmãos mais novos de entrarem no seu quarto.

Visões proféticas do futuro? Como bons vetero-europeus, preferimos a receita do social-democrata vienense Franz Vranitzky, antigo chanceler austríaco que disse “Quem tem visões deve consultar um médico”. Mas quanto mais velhos ficamos, nós, ocidentais, mais sofremos de mimetismo diacrónico. Imitamos os nossos grandes líderes de outrora, sem medo do ridículo. É o caso de Emmanuel Macron, com o seu manto napoleónico, pronto para uma campanha militar contra a Rússia. E dos dirigentes polacos, bálticos e escandinavos que gostariam de riscar a Federação Russa do mapa, para dar origem a um colorido festival de miudezas “pós-coloniais”. Um clima de higiene mundial neo-futurista, exclusivamente bélico, que enevoa tanto os comentadores “mainstream” insuspeitos como os militares no activo e no passivo. Assim, Janan Ganesh, colunista do Financial Times, estabelece a equação paz=estagnação e convida-nos a saborear a guerra como um “estimulante”.

Uma droga poderosa, cujos efeitos Ganesh descreve em três fases; “Primeiro, o trauma obriga-nos a imaginar lugares novos e estranhos. Em segundo lugar, as ideias resultantes vendem-se mais facilmente porque as ideias dominantes estão agora manchadas de sangue. Em terceiro lugar, a violência provoca muitas vezes alguma inovação técnica”. Faz eco do general François Lecointre, antigo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas francesas, certo de que dentro de dez anos nós, europeus, teremos de recolonizar África porque não podemos continuar a aceitar “fazer fronteira com o caos”. Em todo o caso, “só podemos matar pela França, não pela democracia”. Aqui Lecointre imita o Robespierre aprendido na escola de que “A ideia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um político é acreditar que basta a um povo ir armado a uma nação estrangeira para a fazer adoptar as suas leis e a sua constituição”. O ilimitismo do limitado que somos gera monstros.

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