Livros | Martin Zeller e Debby Sou Vai Keng lançam “The Passenger” em Lisboa

“The Passenger” é um livro desdobrável de fotografias sobre a passagem do tufão Mangkhut sobre uma pequena ilha de Hong Kong. Ao lado dos cenários de destruição, capturados pelo fotógrafo Martin Zeller, revelam-se histórias ficcionadas e poemas de Debby Sou Vai Keng, artista e autora de Macau. A obra será lançada amanhã em Lisboa

 

No início nem era para ser um livro. Martin Zeller, fotógrafo alemão que durante muitos anos esteve radicado em Hong Kong, estava de visita à ilha de Peng Chau, na região vizinha, na companhia de Debby Sou Vai Keng, pintora e escritora natural de Macau. A trabalharem juntos na área das artes plásticas e fotografia há vários anos, enfrentaram, em 2018, a passagem do tufão Mangkhut por Hong Kong. Martin Zeller começou a fotografar a tempestade e o que dela restou. Depois, Debby Sou Vai Keng resolveu escrever histórias ficcionadas e poemas que remetem para a ideia de alguém de fora que observa a ilha com a natural curiosidade de um desconhecido.

Assim nasceu “The Passenger”, um pequeno livro de fotografias, textos e poemas, desdobrável, em inglês e chinês, que será lançado amanhã em Lisboa na galeria Imago.

Ao HM, Debby Sou explicou que esta obra é produto do acaso, porque quando foram para Peng Chau tinham um projecto diferente. “Pretendíamos desenvolver um projecto sobre montanhas e mares. Mas não tínhamos nenhuma ideia sobre o que queríamos fazer exactamente. Queríamos trabalhar juntos recorrendo à fotografia e, talvez, à pintura, com pequenos contos e poemas. Então, quando chegámos, enfrentámos o tufão.”

Na preparação da casa para enfrentarem juntos a tempestade em segurança, Martin Zeller começou, subitamente, a fotografar. “Estando em casa podíamos ver a tempestade, o que se tornou interessante, víamos o mar agitado, o vento. Fiquei muito entusiasmado e comecei a fotografar.”

Foi aí que os dois artistas decidiram avançar para a edição do livro, que não pretende ser um retrato documental de mais um tufão, de entre muitos que passam por esta zona do globo. Trata-se também de um retrato “da comunidade que vive na ilha, do que aconteceu”. “Não estávamos interessados em fazer algo documental”, recorda Martin Zeller.

Escrita da observação

Debby Sou descreve que, à medida que iam passeando pela ilha depois da passagem do Mangkhut, ajudando os moradores a recompor o que restou da destruição, lhe surgiram ideias para escrever. “Quando escrevo, escrevo ficção, não faço escrita documental. Misturo coisas e imagino-as. [O livro] tem uma espécie de passageiro e as histórias são totalmente ficcionais, com personagens criadas. Mas claro que baseio muitas das minhas histórias em experiências pessoais.”

A autora confessa que não escreve histórias como uma residente, mas sim revelando impressões como se fosse turista. Debby Sou referiu ainda que o facto de ser de Macau não lhe dá uma perspectiva de proximidade à realidade de Hong Kong. Ou seja, quando escreve, e quando escreveu para o “The Passenger”, conseguiu ter o distanciamento necessário.

“Tenho de dizer que, como alguém que é de Macau, sempre olhei para Hong Kong como se me fosse estranha. São vivências completamente diferentes. No caso desta ilha, as pessoas têm formas de comunicar completamente diferentes, e há até diferenças em termos de mentalidade. Em cada ilha de Hong Kong há uma vivência diferente. Por isso, para mim, foi fácil ver as coisas como se fosse mesmo uma passageira, uma verdade estranha”, disse.

Convidada a falar mais da sua escrita, a autora mostra-se retraída. “Não sou muito boa a descrever as minhas histórias. É algo difícil de expressar. Quando escrevo, o processo é semelhante do que quando pinto. Simplesmente pego num pedaço de papel e começo. Às vezes o papel e as cores dizem-me como continuar, e eu simplesmente prossigo. Quando decido, páro, e às vezes tenho de trabalhar no quadro. Com as histórias é um processo muito semelhante, simplesmente começo [a escrever].”

As inspirações para os textos de Debby Sou surgem-lhe das caminhadas que tanto gosta de fazer, e das observações que daí surgem. “Muitas vezes falo com pessoas, mas não sou muito boa nisso. Prefiro observar, simplesmente, e imaginar coisas.”

Um projecto diferente

“The Passenger” não tem rostos de pessoas. Não tem os moradores da ilha a braços com a destruição. Só um homem corajoso que decidiu sair de casa e correr bem junto à costa para observar a violência do mar. De resto, persistem imagens dos cacos caídos, das árvores dobradas. Havia uma ou duas fotografias de rostos, que Martin Zeller decidiu retirar por se afastarem do conceito original.

“Estava mais focado em captar o ambiente. Mas tenho a dizer que, hoje em dia, é difícil fotografar pessoas, que muitas vezes ficam ofendidas quando apontamos a câmara. Sobretudo numa situação especial como esta, com a passagem do tufão. Não querem lidar com fotografias e estão preocupadas em limpar as suas casas. Mas, para mim, foi muito interessante fazer este projecto, pois percebemos até que ponto o carácter documental se transforma em arte.”

Martin Zeller e Debby Sou estão habituados a criar juntos. Actualmente vivem em Almada, onde têm o estúdio “StudioZeller”, que recorrentemente desenvolve exercícios de arte multidisciplinar. Ele fotografa, ela escreve e pinta por cima das suas imagens, numa interconexão constante. Inspiram-se mutuamente. “The Passenger” é algo diferente de tudo o que já fizeram.

“O primeiro projecto que fizemos juntos foi em 2013, em que pintei por cima das fotografias dele, tiradas em Berlim, e que foram impressas em papel de arroz. Consegui pintar recorrendo a técnicas da pintura tradicional chinesa. Mas desta vez [com ‘The Passenger’] foi uma decisão bastante espontânea, porque há muito tempo que queríamos fazer algo e não sabíamos mesmo o que fazer com este material. Depois surgiu a covid e não conseguíamos ir a Hong Kong e pensei que seria uma pena deixar as imagens numa gaveta. Discutimos o formato da publicação, chegámos a pensar publicar em forma de mapa desdobrável, mas depois ficava algo complicado. Então ficou assim, como se fosse um acordeão”, explicou Debby Sou.

Lançar “The Passenger” em Lisboa foi fruto do acaso, mas os dois autores garantem que o projecto vai também ser lançado em Macau e Hong Kong, embora ainda não haja datas concretas. Martin Zeller e Debby Sou estão também a planear o regresso, por uma temporada, a Hong Kong, a fim de desenvolverem novos projectos.

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