Ai, o bolo

António Costa, lento e oriental, segundo o diagnóstico de Marcelo Rebelo de Sousa, disse e deixou perceber muitas vezes que tinha política e pessoalmente a sua preferência pelo Campo de Tiro de Alcochete para futuro Aeroporto Internacional de Lisboa. E deixou de falar nisso depois da ida do Marcelo para Belém, acatando a “solução Montijo” sem dar um pio sobre a sua cambalhota.

Nem quando pôs todos os autarcas do PS, tanto a norte e como a sul do Tejo, especialmente os do distrito de Setúbal, a exigirem que a condenada Base Aérea n.º 6, no Montijo, passasse a ser a pista de aterragem para o grande negócio. Não sei qual nem se alguma vez chegarei a saber.

O que sei é que o Aeroporto Humberto Delgado vai um dia chamar-se Aeroporto Luís de Camões e que, um fulano de temperamento esbracejante, oriundo da terra das enguias, já teve de percorrer o caminho das pedras, até ser deputado e ministro.

Chama-se Pedro Nuno Santos e, alegadamente, sempre teve Alcochete como o cenário introcável para acolhimento “patriótico” dos nossos caças e bombardeiros que, por qualquer outra manigância, foram inesperadamente apontados ao Montijo, pela única rota possível, bombardeando com quatro extensos roncos por minuto, de dia e de noite, os telhados das mais de 400 mil pessoas que ainda moram entre Almada e a base montijense já em regime de emagrecimento.

Só que o PS local, regional e nacional, com o lento Costa a pilotar a aeronave, nem sequer precisou de mudar de rio para espetar o pau da bandeira num espigão de asfalto, uma dúzia de milhas náuticas mais a norte, e o rápido Pedro Nuno ensaiou a sua própria cambalhota circense, assumindo o Montijo como indiscutível e transformando-se no seu mais estrénuo defensor.

E eis senão quando o mesmo Pedro, qual bailarina aveirense, decide que fora traído pelo Costa e, apanhando-o no estrangeiro, vem a público dizer em tom cesariano que o Aeroporto Internacional de Lisboa será em Alcochete e que, antes ainda, estaria em glorioso funcionamento uma ultramoderna e mais que ultrafuncional ponte rodoferroviária, entre o Barreiro, na margem esquerda, e Chelas, na margem direita do Mar da Palha, que mais adequadamente deveria ficar com o título eterno de Mar da Glória.

Aparentemente, o Costa só sentiu a facada nas costas quando voltou Portugal e o estouvado Pedro teve de se demitir para ser agora o sucessor do ex-primeiro-ministro e, enquanto líder do PS e principal opositor do agora senhor de S. Bento Luís Montenegro, comprometendo-se a com ele cooperar em tudo que seja importante para o povo luso, que era o que o Costa já vinha fazendo, à sorrelfa e com cálculos próprios, assegurando assim um apoio sem preço para a Presidência do Conselho da Europa, trono justo e sacrossanto, lentamente conquistado, depois de uma caminhada que também Marcelo já enalteceu, não obstantes as cumplicidades múltiplas com os morticínios de Gaza e do Médio Oriente.

Acontece ainda que o tal Aeroporto Luís de Camões só terá de existir de facto daqui a vinte anos e, como o tempo e os negócios não perdoam, nessa altura outra realidade se pode impor: ou o negócio já é outro, ou já são outros a negociar e o aeroporto pode precisar de novos estudos, novo dono e, obviamente, de novas razões para ser construído nem que seja sobre estacas, ao largo de Tróia ou por cima de Olivença, com escritórios no Pulo do Lobo e uma delegação em Peniche.

Os que ganharam e os que perderam com tudo isto são, como de costume, os mesmos de sempre. Ganhar, todavia, só podem os donos disto tudo, seja nas terras do Baixo Ribatejo, seja no reordenamento urbanístico da Área Metropolitana de Lisboa e nas outras, na ANA, na Vinci e na TAP, nas movimentações da alta, média e baixa finança, com o Banco de Portugal em boas mãos, assim como a restante banca, e, naturalmente, na política habitacional e na reconversão da ordem urbanística de Lisboa, de Oeiras, de Cascais e do Algarve e associados, bem como nas contas das pontas-de-lança em Bruxelas o nos ‘offshores’ londrinos e outros, porque “isto anda tudo ligado”, como dizia um falecido poeta e patrício meu, e Portugal tem a alta responsabilidade de ser um dos pilares mais bem plantados em três continentes e um oceano, com vistas à escavação presente e futura na mina turística dos donos disto tudo.

O que me entristece é que, mesmo se Portugal recuperasse a independência nacional, já não ia a tempo de construir uma ordem interna justa, o fim das castas e a prosperidade generalizada, ou seja, a possibilidade de o bolo ser, finalmente, bem repartido.

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