O banho de Buda

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

I

O Dia de Buda

A todos os seres especiais se associam fenómenos raros, sejam eles pessoas excecionais ou divindades, sobretudo pela altura do nascimento, como é o caso de Jesus Cristo, Confúcio e o Buda Histórico Siddharta Gautama Shakyamuni. Quando Jesus nasceu uma estrela brilhou pujante nos céus, encaminhando os Três Reis Magos do Oriente até Belém, uma estrela poderosa e sumamente inteligente guiou até nós os Reis Sábios há 2024 anos com os quais partilhou a sua transcendente sabedoria.

E que dizer do nascimento de Confúcio? Está associado a um unicórnio (麒麟 Qílín) como seria de se esperar do organizador do sistema meritocrático que introduziu as Cinco Virtudes constantes na China (Benevolência, Justiça, Ritos, Sabedoria e Confiança). O Qilin era tão bom, que apenas voava, sem sequer pisar as ervinhas.

Quanto a Buda, pilar do sistema espiritual miscigenado chinês, nasceu em 624 a.C, tendo falecido em 544 a.C . Era de ascendência real, filho do rei Suddhodana e da rainha Maya, mas tal como Jesus Cristo, teve dois pais, um terreno, outro celestial, já que se conta que a mãe engravidou não pelo Espírito Santo, mas por contacto com um elefante branco e pela axila, assim gerou e concebeu o corpo sagrado. Buda ao nascer terá saudado o mundo com um rugido de leão, pelo que o Budismo ficaria para sempre associado à figura totémica deste felino. Deu então sete passos, donde imediatamente brotaram sete lótus. Apontou com uma mão para o Céu e outra para Terra, afirmando simultaneamente a jurisdição sobre ambos os domínios. Foi então que todas as divindades celestiais se apressaram a prestar-lhe homenagem, incluindo nove dragões que o banharam efusivamente. Este episódio ocorre no oitavo dia do quarto mês lunar e, desde então a história tem-se vindo a repetir num banho ritual à estátua de Buda um pouco por toda a Ásia onde esta religião impera espiritualmente. Já Jesus seria batizado bem mais tarde, em adulto, por S. João Baptista no Rio Jordão. De qualquer modo, a água é um importante elemento purificador e hoje nas igrejas cristãs as crianças recebem o seu batismo nos primeiros meses de vida.

Em 2022 tive oportunidade de publicar um texto poético intitulado Visitações, de temática espiritual, pelo que aqui deixo o poema “O Banho de Buda” (Alves, 2022, 65)

O banho é sagrado,

Buda, que o recebeu,

Foi por nove dragões batizado,

No 8º dia do 4º mês lunar,

Sete séculos antes de o Senhor chegar.

Veio o grande Meditador ensinar

A libertar do sofrimento e da dor.

Os dragões receberam-no

Com salvas de água,

Em honra do branco progenitor

Celestial que o criou no corpo de Maya

Enquanto o pai Suddhodana a terra governava.

De acordo com informações recolhidas no site do Instituto Cultural de Macau, relativo ao Património Cultural, se a introdução do Budismo no sul da China, mais concretamente no distrito de Xiangshan (香山), data da dinastia Tang, do reinado de Xiantong (唐咸通), entre 820 e 872, já o primeiro templo budista é o de Kun Iam (观音), ou o templo de Guanyin (觀音), na pronúncia do Norte, sendo bastante posterior, dos finais da dinastia Ming, de 1632; a sua primeira nomenclatura foi templo de Pou Chai (普濟禪院), mais tarde seria rebatizado com o nome da Boddhisattva da Compaixão. Situado na Avenida do Coronel Mesquita está associado ao amor universal, que Guanyin distribui por todos. Neste templo seria assinado o primeiro tratado diplomático entre chineses e americanos, o “Tratado Sino-Americano de Mong-Há” em 1844 entre o Vice-Rei de Cantão, Ki Jing, e o ministro plenipotenciário Caleb Cushing. Mas aí também se celebra o amor particular, já que o seu jardim abrigou durante bastante tempo duas árvores entrelaçadas que simbolizavam o amor terreno e a fidelidade conjugal contra todas as convenções.

Um outro templo em lugar de destaque entre os vários dedicados a divindades budistas é Kong Tac-Lam, mais recente, datando do início da primeira república, importante pelo facto de surgir ligado à educação feminina de mulheres budistas em Macau, num tempo em que estas já deviam ser educadas, a bem da nação, ainda que depois de cursadas, regressassem a casa para educar os filhos de acordo com o ideal de mulher republicana então vigente, que produzia esmeradas donas de casa. Também as mulheres budistas, bonzas e laicas, beneficiaram dos ares dos novos tempos, quando se deslocavam a ou para Kong Tac-Lam a fim de se letrarem.

Entre as atividades festivas do Dia de Buda, importante festividade em Macau, cuja sociedade conta com uma mistura de várias religiões em que o Budismo é proeminente, nos templos e associações os crentes juntam-se para orar, discursar sobre matérias budistas e para banhar buda. Ora este banho conduz-nos à reflexão sobre importância do corpo sagrado.

II

O corpo sagrado

O corpo é espaço de sentido, quando se pressupõe uma divisão entre alma e corpo, em que a alma entra e sai do corpo a seu bel-prazer, como no Cristianismo ou é ainda o próprio sentido quando não há cisão entre a esfera física e a espiritual.

O corpo sagrado é único.

A literatura fornece-nos uma vasta gama de metamorfoses mágicas nos contos de bruxas e de fadas, e não só. Quem não se recorda do pacto com diabo atuando no corpo de Dorian Gray, personagem famosa de Oscar Wilde? De Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll ou, mais recentemente, da Metamorfose de Kafka?

Na Metamorfose de Kafka temos um bom exemplo de uma ligação indissociável entre um psiquismo recalcado por uma vida social e familiar sem sentido e o corpo. Gregor Samsa, o protagonista, que, acima de tudo, denuncia um estado de coisas absurdo, sofre um processo de metamorfose, onde o corpo é palco de uma revelação animalesca, quase demoníaca, que rompe com todas as leis naturais e sociais da ordem estabelecida. De repente, o caixeiro-viajante acorda quando a mãe, no seu tom suave, o vai alertar por estar atrasado para o emprego, ele responde já semitransformado em inseto, e sente um profundo horror pela sua voz: “Gregor teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho chilreante.” (Kafka, 1975,11)

Não fica completamente metamorfoseado em animal, torna-se uma figura repelente por ser uma mistura entre o humano e o animal. Ora esta mistura entre duas ordens biológicas diferentes oferece as figurações mais assustadoras, como bem viram os budistas ao fazer guardiões dos seus templos os famosos lokapalas. Mas, voltando a Gregor, quando tenta levantar-se da cama, percebe que em vez de braços e mãos tinha apenas as inúmeras perninhas, que não cessavam de se agitar em todas as direcções e que de modo nenhum conseguia controlar (Kafka, 1975,13).

O percurso do protagonista afasta-o da família rumo à morte. Ele rejeita a ordem estabelecida. Continua a ligá-lo à existência o afeto pela irmã e as manifestações artísticas: a sua arte, a da carpintaria, e a música que a irmã lhe fazia chegar aos ouvidos por meio do violino tocado. Ele questiona-se: Poderia realmente ser um animal quando a música tinha sobre si tal efeito? (Kafka, 1975,81)

No caso específico da Metamorfose de Kafka, tudo se processa no mundo natural, não havendo qualquer apelo a entidades divinas, sejam elas imanentes ou transcendentes.

Nota José Gil em Metamorfoses do Corpo: «Amuletos, talismãs, feitiços, elixires e relíquias conservam em si energias dominadas.» (1980,20). O corpo é o recetáculo que permite todas as metamorfoses e receção de sentidos. O sacralizado, o demoníaco e o mágico precisam de um lugar de manifestação. O corpo é médium entre várias realidades. É microcosmos natural, é uma minúscula organização, encerrando em si o princípio da unidade plural tão caro a Leibniz – tudo é um, porque um é tudo. Ele é, ainda, um espaço sociocultural, pois além de corpo particular, é coletivo: contém em si a herança dos mortos e a marca social dos ritos (Gil, 1980:43) e, por último, é médium ou microcosmos religioso, domínio privilegiado de comunicação e manifestação do sagrado, surja ele na forma de espírito, antepassado, imortal ou deus.

Como é possível então estas potencialidades exacerbadas irromperem no corpo? Será que lá estão desde sempre? A resposta vai depender do tipo de filosofia religiosa adotada. Numa perspetiva imanentista e, portanto, claramente oriental, o corpo é animado de espírito desde sempre. Nada existe fora dele, mas o divino que o anima não se manifesta espontaneamente, pois são necessários exercícios físicos e espirituais para que o sagrado se revele. Na tradição cristã, o corpo, mesmo o parcialmente divinizado, onde já ocorreu a ligação essencial ao sagrado, não escapa ao sofrimento na sua condição telúrica, e experimenta martírios que os budistas relegam para a esfera infernal.

No Cristianismo foi necessário Cristo humanizar-se e sofrer o calvário e ser pregado numa cruz para através do seu sofrimento libertar a humanidade. Fica então assente que não teria havido libertação coletiva sem o martírio individual de um corpo particular e muito especial, o do filho de Deus.

Para os budistas, o martírio do corpo prova o contrário, que ainda não se deu a libertação da esfera do sofrimento e do desejo. O mundo fenomenal desperta com os seus desejos um sorriso numenal compassivo, abrindo-se uma única exceção para o buda do futuro, Maitreya, também conhecido na China por Buda que Ri ( 笑佛 Xiào Fó ) e por Buda Compassivo, que há-de colocar novamente a roda do dharma em movimento. O seu mudra é dharmachakra, onde o polegar e o indicador de ambas as mãos formam um círculo representando a roda do dharma.

O corpo, no Budismo tântrico e no Mahayana, permite a união com a esfera divina pela libertação, por meio de exercícios propedêuticos respiratórios e meditativos, do verdadeiro sentido, do sagrado, e não se pode prescindir dele em qualquer momento. Também no Cristianismo o corpo de Cristo, embora mantendo um estatuto dual, portanto separado em relação ao espírito, tem a possibilidade de inaugurar uma nova aliança, justamente na Última Seia:

Jesus, partindo o pão e dando-o aos seus discípulos «isto é o meu corpo», sela uma nova aliança ao mesmo tempo que depõe a sua presença no corpo dos discípulos. E quer seja no domínio da história das sociedades ou no da ascese mística, o enquadramento e o «encher» de um significante flutuante, vazio, acompanha sempre a constituição de um corpo novo – que inaugura o processo de aparecimento da presença do sentido. (Gil, 1980,73)

A questão que se coloca é: há uma afinidade de raiz em relação ao modo como é vivido o aparecimento de uma nova ordem por meio do corpo, no Budismo e no Cristianismo? No Cristianismo, através da Última Seia, o que notamos é a assimilação de um corpo divino que está fora, que literalmente transcende os discípulos e que uma vez incorporado os modifica, unindo-os à esfera sagrada. Entretanto, o que sucede ao próprio corpo de Cristo é que morre como homem para ressuscitar numa esfera transcendente e divina onde viverá para todo o sempre, sentado à direita do Pai. No Budismo, liberta-se o corpo do que este tem de matéria pesada e de ilusão para que melhor se possa unir ao divino. A verdadeira energia perpassa a matéria e precisa dela para se manifestar. Isto só é possível porque o divino já está previamente em cada corpo particular, não é incorporado nem assimilado; antes é libertado, quando são ultrapassados os estados ilusórios, sociais e culturais que dividem a pessoa e a afastam da energia envolvente, definida como pura atividade, corpo subtil, ou na tradição budista e taoista esotérica, embrião espiritual.

Nunca encontramos no Budismo uma cisão entre puro espírito e a matéria como na tradição cristã. Não há um princípio que era simplesmente Verbo, embora haja carne que regresse ao Verbo, mas diferentemente da tradição cristã, no Budismo volta-se ao Verbo sem abandono da condição material, ou melhor, sempre através desta até à libertação definitiva da roda da reincarnação. Até lá ore-se e banhe-se Buda.

Referências Bibliográficas

Alves, Ana Cristina. (2022). Visitações. Fafe: Labirinto.

Cowell, B et al. (ed) .(1969). The Budha-karita in Buddhist Mahâyâna Texts. New York: Dover Publications, Inc.

Dia de Buda.(2024). Património Cultural, Instituto Cultural de Macau. Disponível em: https://www.culturalheritage.mo/pt/detail/102270?AspxAutoDetectCookieSupport=1

Frédéric, Louis. (1995). Buddhism. Paris, New York: Flammarion.

Gil, José.(1980). Metamorfoses do Corpo. Lisboa: A Regra do Jogo.

Kafka. (1975). A Metamorfose. Mem Martins: Publicações Europa-América.

MM023-Templo de Pou Chai (Kun Iam Tong). (s.d). Bens Imóveis Classificados. Património Cultural de Macau. Disponível em: https://www.culturalheritage.mo/pt/detail/99953?AspxAutoDetectCookieSupport=1

Tatjana & Mirabaina Blau. (1999). Buddhist Symbols. New York: Sterling Publishing Co. Inc.

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