A senhora – 7

Dormitou mal de frio. Levantou-se de madrugada. Dia de aniversário. Pensou. Pela primeira vez em anos. Vestiu a camisa branca, o fato. Esticou-o bem pelas abas.

Limpou o rosto e o pescoço lentamente, com uma pequena toalha humedecida. Penteou o cabelo com água. As moedas, poucas, a tilintar no bolso, o cartão de residente no do peito. Saiu de costas direitas, um pouco trémulo do jantar da véspera saltado em branco.

O pensamento a voar, mais do que as pernas, para uma canja branca e espessa. A vizinhança intrigada com o fato, a perguntar se já comeu. Que não. Mas desta é que era uma canja para começar o dia. A seguir ao dia que era para ser e não foi. Caminhou silencioso. A pensar na pergunta.

Dos tempos de pequenas coisas essenciais que, asseguradas eram a linha firme de caminhar nos dias. Não se pergunta se se apostou um ordenado magro nas fichas do casino. Se se está feliz ou com saúde. Somente: já comeu? E em muitos dias mesmo nada de comida a acalentar o estômago dorido. Mas hoje, em fundo, uma canja espessa e quente.

O caminho de anos, a fugir aos traçados ruidosos, e guiado por bússola imutável, atraído pela memória das águas mansas e cinzentas da baía. Mas isso a memória. De que agora, em busca dos amigos de sempre, restava em certo ponto apenas o muro e não já as águas. Porque não recuariam um pouco é dúvida que não se coloca em palavras. Restam eles e a memória das águas. Que ainda lambem o muro mais à frente. Pouco falavam, pouco falaram em anos.

Talvez adivinhando vidas e perguntas a não fazer. Opiniões a divergir. Sobre aquela terra grande, sobre este território pequeno. Ou porque não valera a pena. Sem mesmo pensar no assunto, gostava mais de uns silêncios do que de outros. Porque as pessoas são possibilidades ou impossibilidades de comunicação ou de silêncios, no mesmo conforto. Nostálgico ou melancólico, cúmplice ou compreensivo. Acusador ou de interrogações mudas. Tolerante ou redutor. Possibilidade encontradas e erigidas no silêncio dos velhos camaradas do xadrez.

Não camaradas nesse sentido. Sentido cortado rente, quando desse vinha como uma teia, uma rede alongada de lá até aqui. Desconfianças, perguntas, receios. A querer envolver. Informações, dados. Nada. Um silêncio hermético, o que deu de si. O que queria de cá para lá, era no sentido inverso. Que viesse a mulher, o filho. A memória amarga das meninas, de todas as meninas depois de 79. Dadas, como coisas para quem as quisesse. Durante anos. Não queria mais nada. Nem confusões. E hoje já nem isso.

Assim se foram escolhendo amigos. Isso e as idades que levavam uns e deixavam outros.

Mas aqui, em território quase de lendas e histórias de piratas dos mares, esse crescendo em altura de um conforto de sonhos. E, a partir de um dia indefinido, o decrescendo em altura da possibilidade dos sonhos. A acabar, hoje, na sórdida precariedade do quase nada. Satisfatório, como todas as escalas e estações de uma curva em ascensão que um dia virou em depressão. Uma hipérbole de um ramo só. Ou, geometricamente uma parábola em definição de fim.

Porque o velho muito muito velho, era um velho muito muito velho, mesmo. E a pobreza inicial, é o ponto de acordo e encontro simétrico da pobreza final. Mas há um detalhe neste dia a seguir ao dia que não foi. E o dia em que está, a seguir ao outro, é o dia de estrear o fato novo, velho de tantos anos, quase, como de habitar esta terra ao lado. Da outra que deixou de ser a dele, ainda antes de vir, e que nunca foi bem dele a mais do que a decisão de ser. Hoje, pela primeira fez, era, e festejada de fato novo. Velho de tantos anos como anos tinha de habitante do território. E agora residente. Como desde o primeiro dia mesmo sem cartão. Viver e habitar, faz-se à margem.

Chega à Praia Grande. Avança como se não os visse já por ali, os companheiros de jogo, com tabuleiros de acolher momentos, pássaros verdes nas gaiolas a iludir a prisão com uma paisagem de fundo. Segue vagarosamente até à Meia Laranja. Só para o tempo passar um pouco mais e volta. Senta-se na ampla curva do muro como tantas outras vezes. Naquilo que ainda é o muro como foi. A debruar as águas do rio tornado longe.

Senta-se na ampla curva e lembra-se vagamente daquela outra curva de uma nuca que acolhia águas dinâmicas e sonhos de revolução. Um perfil de olhos vivos e incisivos sobre os seus. Mas a curva de uma amurada baixa é agora cega como a curvatura daquela nuca e daqueles olhos que já não cruzam os seus como este muro não afaga as águas de outro tempo. E, no entanto, mais adiante os companheiros das peças de jogo e do tabuleiro sempre a acolher momentos.

O sol discreto rompe a névoa de um dia a adivinhar-se húmido. Muito claro, como prata nova. Contempla a paisagem familiar, a cimentar raízes. Antes de avançar os bons dias, o já comeu. E ele, o homem velho muito velho, tem ainda de cumprir para consigo, voltar atrás, à ruela que sobe da baia, e comer a canja sonhada, para poder responder hoje sinceramente que sim.

E volta depois a descer a rua, e ao silêncio partilhado de amigos de muitos anos. Ao muro, ao jogo sereno de entreter o tempo. Às árvores de raízes aéreas que sobram numa marginal de que já só estes velhos são legítima orla de cidade, ou memória. Às águas recuadas pela voracidade de um bicho cidade que regurgita terra sem descanso e à memória das outras águas planas a lamber o muro sem ruído. Aos velhos muito velhos como ele. Nem todos já ali, os amigos. Os anos, sim, na memória talhada em cada ruga.

Talvez a liberdade fosse afinal uma segunda natureza que não fora previamente sentida estrutural a esse ponto.

E sente-se familiarmente em casa. Como se acabado de chegar.

A uma história que poderia ser somente a de um espelho, macerado de oxidações e tempo, com a moldura de uma cidade.

E esta, continua para lá do conto. Neste, é o fim.

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