Entrevista MancheteMark O’Neill, autor de “Zhou Youguang – Father of Pinyin Writing System” | Uma “vida extraordinária” Andreia Sofia Silva - 13 Dez 2023 “Zhou Youguang – Father of Pinyin Writing System – The Man Who Made China a Literate Nation” é o novo livro do jornalista e autor Mark O’Neill focado na história do homem que inventou o sistema de romanização de caracteres chineses, permitindo a alfabetização de cerca de um bilião de chineses. Falecido em 2017, com 111 anos, Zhou Youguang viveu “cinco vidas numa só” Fale-me do início deste projecto. Porque decidiu escrever a história de Zhou Youguang? Quando estava em Pequim vivia muito perto do professor Zhou. Na altura, já tinha algumas coisas sobre ele nos jornais chineses. Ele era muito conversador, simpático, e tinha mais de 100 anos. Fiquei com uma forte impressão dele nessa altura, mas como o dia-a-dia era muito preenchido com o trabalho, nunca lhe dei a devida atenção. Só muito depois olhei para o que tinha feito, e descobri que a sua vida foi completamente extraordinária. Poucas pessoas chegam aos 111 anos, e mesmo durante a sua vida, teve cinco vidas diferentes. O sistema pinyin foi o maior e mais importante legado que deixou à humanidade, mas também teve outras vidas. Outras profissões? Foi bancário, trabalhou em Xangai, Nova Iorque e Londres. Durante a II Guerra Mundial esteve em Chongqing, que era a capital da nação. Aí desempenhou um trabalho muito importante, providenciando comida e roupa aos militares e à população. Depois, no período após 1949, foi professor de economia. [Zhou Youguang] sofreu muito no período da Revolução Cultural, e depois da sua reforma escreveu muitos livros. Nós temos apenas uma vida, fazemos apenas uma coisa. Mas o professor Zhou fez cinco ou seis coisas ao longo da vida, é incrível. Zhou Youguang inventou o sistema pinyin que permitiu a muitos chineses e estrangeiros aprenderem mandarim. Foi o principal responsável por este sistema inovador? As autoridades chinesas reconheceram esse papel? É uma questão complicada. Depois da Revolução de 1911, quando caiu a dinastia Qing e nasceu a República da China, muitos intelectuais perceberam que tinha de ser alterada a forma como se aprendia chinês. Se a única forma fosse aprender todos os caracteres que existem, apenas uma pequena parte da população teria essa capacidade, por ser algo estudado durante um longo período de tempo, por quem têm tempo livre. Por outras palavras, tinha de existir outro sistema. Então, a partir de 1911, passou a haver diferentes sistemas de romanização [dos caracteres], ou não era usado, sequer, o alfabeto romano. Podiam usar-se outras versões, de forma abreviada, e foram elaboradas muitas outras. Muitos chineses estudaram na União Soviética e desenvolveram outro sistema, afirmando que não eram necessários caracteres e que bastava usar o sistema romanizado. [O sistema pinyin] começou a ser desenvolvido a partir dos anos 30 ou 40, tendo sido publicados vários livros e jornais com este sistema. E os líderes comunistas, como Mao, mas não só, estavam muito interessados nele. Se os sistemas de romanização eram muitos, como foi a escolha do mais adequado? Quando os comunistas sobem ao poder em 1949, queriam escolher um dos sistemas em vigor, e teria de ser adoptado o melhor. Houve um intenso debate no Governo e entre intelectuais, como professores. Estes disseram que não poderiam ser abolidos os caracteres chineses por serem parte central da história e tradição da China, e também da religião. Então o novo sistema seria sempre adicional aos caracteres. Em 1956 o professor Zhou ensinava economia em Xangai e foi para Pequim onde passou a trabalhar na chamada Comissão para a Reforma dos Caracteres Chineses. Este órgão foi criado para conceber o sistema romanizado. Assim, não é justo dizer que o professor Zhou Youguang é o único autor deste sistema, porque não era o único membro do grupo. Antes dele muitos académicos fizeram pesquisas e escreveram estudos sobre a matéria. Ele chefiou o departamento que finalizou o sistema, e, nesse sentido, podemos de facto chamá-lo de “pai do pinyin”. Quando as pessoas o entrevistavam e o chamavam de “pai do sistema pinyin”, ele dizia que não tinha esse estatuto, que era, sim, o filho do pinyin. Era muito humilde, mas também reconheceu o quão difícil foi o trabalho feito pelos académicos antes dele, que o levou ao novo sistema. Quando [o pinyin] estava a ser concebido, o professor Zhou foi sujeito a intensas críticas. Porquê? Dentro do Partido Comunista havia moderados e pessoas mais à esquerda, e os que estavam mais à esquerda chamavam-no de escravo do Ocidente, questionando o uso do alfabeto romano, pois na União Soviética, por exemplo, havia o alfabeto cirílico. O professor Zhou disse que o alfabeto romano era o melhor por constituir um padrão global e por ser mais fácil para os chineses aprenderem. A sua visão prevaleceu até ao fim. Mas foi fortemente criticado por pessoas dentro do Governo chinês e pela comunidade intelectual. É interessante a influência soviética neste processo. Houve pressão para usar o alfabeto cirílico no processo de reforma dos caracteres chineses? A República Popular da China (RPC) foi estabelecida em 1949 e aderiu ao modelo económico e político da União Soviética, país que esteve muito envolvido com a RPC nos seus primeiros anos. Muitos líderes chineses estudaram na União Soviética, país que tinha centenas de especialistas e técnicos a trabalhar nos maiores projectos industriais da China. A União Soviética teve uma enorme influência no novo país, na nova China comunista. Quando o trabalho da comissão de reforma [do chinês] começou, o embaixador soviético teve contacto com o que estava a ser feito e sugeriu o uso do cirílico, pois era um alfabeto usado na Rússia, Ucrânia e em muitos outros países. Defendeu ainda que a União Soviética era um grande aliado da China. Politicamente, havia um forte argumento para usar o cirílico, mas o professor Zhou era um homem muito inteligente. Em que sentido? Para ele era mais importante ter o melhor sistema para os chineses. Não procurava agradar a americanos ou soviéticos, ou a qualquer outro Governo. Estou certo de que ele tomou a melhor decisão porque mais tarde muitos chineses começaram a estudar inglês. As principais línguas do mundo usam o alfabeto romano, então ele tomou a decisão certa para a China. Felizmente, a decisão teve o apoio dos seus superiores. Podemos, assim, afirmar que foi uma pessoa muito independente em relação a todos os círculos políticos e a todas as pressões políticas com que se deparou. Claro que trabalhou durante dois anos como bancário na América, e em Londres durante um ano. Quando esteve na América, conheceu muitos linguistas chineses a quem pediu opiniões. Em Nova Iorque, depois do trabalho e de jantar com a mulher em casa, costumava ir para a biblioteca pública quase todas as noites. Foi tantas vezes que chegou a ter um lugar especial reservado para ele, porque ficava lá muitas horas. Portanto, foi alguém que tirou vantagens desse tempo, foi um estudante muito diligente. Ele estava muito ligado ao conhecimento, não apenas sobre linguística, mas sobre vários temas. Poderíamos perguntar várias coisas ao professor Zhou que ele saberia responder. Não era membro do Partido Comunista ou de qualquer outro partido. Diria que era uma pessoa muito independente e um puro intelectual. Porque era tão importante assegurar a literacia da população após a implementação da RPC, em 1949? Diria que todos os Governos que se seguiram após a revolução de 1911 tentaram reduzir o nível de iliteracia da população porque era sinal de um Estado moderno. Para desenvolver um Estado era necessário que a população soubesse ler e escrever, para poder estudar e trabalhar melhor. Penso que esse foi o grande motivo por detrás da decisão do Governo da RPC e da comissão criada em 1956. Alguns dos objectivos [desta comissão] era simplificar os caracteres chineses e transformar o mandarim numa língua nacional. Isto porque antes o mandarim era o idioma mais importante do país, a língua oficial, mas a maioria dos chineses não a falava. Falavam a língua da sua cidade ou província, os dialectos. Por isso, o Governo da RPC queria que os caracteres fossem mais fáceis de aprender, para que as pessoas de Xangai, Sichuan ou Guangdong falassem a mesma língua. Quais as grandes mensagens transmitidas por este livro? Um dos aspectos do trabalho do professor Zhou que ainda não referi são os escritos da fase final da sua vida. Depois de se reformar da comissão em 1991, foi bastante produtivo durante 26 anos até à data da sua morte, em 2017. Escreveu muitos livros e artigos sobre diferentes áreas. A percepção que temos dele é que era uma pessoa independente, um intelectual objectivo, alguém com capacidade para discutir assuntos que outros intelectuais chineses não se atreviam a falar, por serem temas sensíveis. Ele discutiu temas como a Revolução Cultural, o regime do Presidente Mao ou o papel da União Soviética na China. Mas admiro-o por ter escrito sobre estas questões importantes para que os chineses possam compreender o que aconteceu. O Governo pode não ter ficado satisfeito com aquilo que escreveu, mas tinha uma certa protecção devido à sua reputação. Podemos lembrá-lo como um dos fundadores da opinião pública, mas também como um notável intelectual público, sendo que não havia muitos no país.