Seda (4) – Deusas e Festas: Viagem da seda de Leste para Sichuan

Preparamo-nos para sair do recinto do Festival das Flores do Bicho da Seda (蚕花节, CanHua jie) na aldeia Hanshan quando uma placa de madeira apresenta a história de Ma Tou Niang:

“Há muito tempo, em redor da montanha Han vivia a família Wu, cuja filha era muito bonita e ainda criança, o pai educara-a em muitas e diversas matérias, da escrita, com uma excelente caligrafia, à poesia e na arte de manejar a espada. Era uma promissora rapariga.

“Um dia antes do festival Qingming, o pai Wu (武) com o seu grupo partira para combater em XinShi (新市), mas foi capturado. A filha, muito preocupada, espalhou a notícia pelas redondezas a dizer casar-se com quem conseguisse trazer o pai de volta em segurança. Escutando tal, o seu cavalo branco saindo a galope foi libertá-lo, trazendo-o salvo. Quando o senhor Wu soube da promessa da filha e vendo com quem ela teria de casar, ficou muito triste por aquele destino. Então ocorreu-lhe a ideia de substituir a filha por uma outra rapariga, Xiaoqing, para casar com o cavalo. Este, zangado magoou Xiaoqing e o senhor Wu, que vendo o comportamento do cavalo, o matou. A filha, muito triste com os acontecimentos, suicidou-se, ficando o seu corpo num túmulo no cume da montanha Han. No ano seguinte, transformada num bicho-da-seda ofereceu o fio expelido da sua boca para as pessoas tecerem panos e se protegerem do frio. Os sericicultores, em forma de agradecimento, construíram um templo no topo da montanha onde oferecem sacrifícios à rapariga e ao cavalo branco”.

Assim, todos os anos, aquando da festividade do Qingming, as pessoas da área ligadas aos trabalhos de seda juntam-se no Templo Can Hua venerando Can Hua Niang Niang (蚕花娘娘). Trazendo um casulo atravessado num ramo, seguem monte acima para em frente à escultura da deusa, junto ao seu túmulo se ajoelharem a reverenciá-la. Com três vénias agradecem e colocam incenso, velas e oferendas em frente à imagem.

Despertos por este conto, associamo-lo ao encontrado no livro Chinesices de Luís Gonzaga Gomes a narrar a história ocorrida na parte Leste da China, em que uma jovem foi envolvida pela pele de um cavalo e nesse tapete voador transportada até ao Oeste da China e em Shu (hoje província de Sichuan) apareceu num amoreiral metamorfoseada na forma de bicho-da-seda. Saindo do Leste como Imperatriz do Bicho-da-seda, Can Hua Niang Niang (蚕花娘娘), veio em Sichuan a ser Ma Tou Niang (马头娘), Senhora do Bicho-da-Seda, cuja tradução é Senhora com Cabeça de Cavalo, onde já Can Cong, o primeiro antepassado dos Shu Antigos, estava deificado Qingyi shen (青衣神), Deus das Vestes Verde-azuis.

Essa viagem do bicho-da-seda da parte Leste da China para Oeste, até Shu (Sichuan) remete-nos para o Neolítico, período de unificação das tribos, iniciada por Huang Di (o Imperador Amarelo), cuja esposa foi Leizu (a Imperatriz da Seda) de quem teve dois filhos, o mais velho Shao Hao e Changyi, pai de Gaoyang, depois chamado Zhuanxu, o segundo dos cinco Ancestrais Imperadores.

SEDA NO NEOLÍTICO

Na China, no sexto milénio a.n.E. (antes da nossa Era), mais provavelmente entre o século LV e L a.n.E., começou-se a olhar para as lagartas a enrolarem-se nos casulos e nasceu a curiosidade de os desfiar, encontrando os filamentos de seda. Um pote desenterrado em 1973, na povoação neolítica de Hemudu, situada em Yuyao, na província de Zhejiang, tem gravado quatro bichos-da-seda representados a bambolear, dando indicações de se prepararem para iniciar a formação do casulo e percebe-se, pela diferença com os actuais, não terem ainda sido domesticados, segundo The Story of Silk de Liu Zhijuan, editora Foreign Languages Press, 2006.

A Cultura Hemudu (5000-3300 a.n.E.), a jusante do Rio Yangtzé, ficou caracterizada por casas de madeira e bambu, cobertas a colmo, construídas sobre palafitas, sendo os habitantes pescadores e plantarem já arroz, tendo como totem um pássaro do Sol.

A sericicultura (cultura do bicho da seda) não foi inventada por uma só pessoa, mas é resultado de muitos milénios de experiência. Ao historiar tempos tão recuados, as datas muitas vezes contradizem-se, mas já a neolítica Cultura Yangshao (c.5800-3300 a.n.E.) fiava e tecia a seda. A meio curso do Rio Amarelo (Huanghe) e vale do Rio Wei originara-se um importante polo civilizacional, a Cultura Yangshao. Local privilegiado de férteis vales com abundância de alimentos e animais levou à fixação de famílias agricultoras, de caçadores e pescadores, começando rapidamente a ser densamente povoado. Contava já com instrumentos para fiar e tecer, como fusos, rocas, agulhas de osso tubulares e pentes de bater de madeira. Sabe-se hoje seguramente que se tecia com fio de seda no ano 3650 a.n.E., pois na província de Henan foi encontrado um fragmento de gaze com essa idade. Também um tear para fabricar panos de seda datado de 2500 a.n.E. foi descoberto em Fanshan, na província de Zhejiang.

Na parte Oeste da China, na actual província de Sichuan, conhecida antigamente por Shu, foi fundado em 2800 a.n.E. o reino dos Antigos Shu pelo clã Can Cong, que vivia em casas de pedra nas montanhas de Min, a Noroeste de Sichuan, hoje distrito de Maoxian, no desfiladeiro Canling guan, prefeitura de Diexi.

Can Cong, que significa um conjunto de bichos-da-seda, é considerado o primeiro rei dos Antigos Shu e foi deificado como Qingyi shen, (Deus das Vestes Verde-azuis), sendo o totem do clã muito provável o bicho-da-seda. Logo haveria também aqui quem já trabalhasse com a seda e nas árvores das amoreiras vivia o bicho-da-seda ainda em estado selvagem.

A Cultura Shu, centrada no Vale de Chengdu, foi dividida em dois períodos, sendo o primeiro entre 2800 e 800 a.n.E. conhecido por Cultura dos Antigos Shu e ocorreu durante a época dos Cinco Soberanos (Wu Di, 2500-2100 a.n.E.) e das dinastias Xia, Shang e Zhou do Oeste. Este período desenvolveu-se em quatro fases, correspondendo a primeira à Cultura Baodun (2800-1800 a.n.E.), altura em que aí viveram Can Cong e Lei Zu, que empreendeu o cultivo do bicho-da-seda e usou os filamentos retirados do casulo para tecer.
Lei Zu, considerada a primeira pessoa a dedicar-se à criação do bicho-da-seda, (começando assim a sua domesticação), desenovelou os casulos e usou os filamentos de seda para tecer. Várias são as lendas sobre Lei Zu, cuja tribo Xi Ling se situava nas terras do reino dos Antigos Shu (Gu Shu 古蜀), fundado nessa altura por Can Cong que, tal como o nome indica, está ligado à seda e a todo o processo.

O reino dos Antigos Shu criou um dos polos da civilização chinesa, a do curso superior do Rio Yangtzé (Changjiang). Segundo alguns historiadores, os Antigos Shu pertenciam à Cultura Longshan (2500-2000 a.n.E.), com dois polos a jusante, no vale do Rio Amarelo em Shandong e na área da foz do Rio Yangtzé. Esta complementava-se com o povo da Civilização do Rio Amarelo na segunda fase da Cultura Yangshao (3300-2200 a.n.E.), situada no vale médio do Rio Amarelo, actual província de Shaanxi, e originou-se do intercâmbio com a Cultura Longshan, recebendo mais influências do que deu e daí duas distintas culturas evoluíram e hoje distinguem-se pela cor dos potes de argila.

A partir de 2500 a.n.E. ocorreram grandes transformações na China, que de uma sociedade matriarcal se transformava em patriarcal, época de junção das tribos a viverem ao longo do Rio Amarelo, passando as culturas desenvolvidas das várias regiões a estar em estreito contacto pelas Planícies Centrais.

Por essa altura, o Imperador Amarelo (Huang Di, 2550-2450 a.n.E.) ao ver um robe tecido em seda admirou o espantoso trabalho e logo quis conhecer a talentosa pessoa que o confecionara. Seguiu para o território Shu e em Xi Ling Shi, onde vivia a tribo matriarcal Xi Ling, encontrou-se com Lei Zu, segundo o historiador Sima Qian chamada Wang Feng. O encontro terá agradado muito a Huang Di pois casaram-se, passando Wang Feng a ser designada por Yuan Fei, indicando ser a primeira esposa do Imperador Amarelo.

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