Dai Zhen, a benevolência e o desejo

Andei a ler a PESQUISA SOBRE O BEM, de Dai Zhen (戴震 Tai Chen, em Gilles-Wade), um filósofo do século XVIII (1723-77), da escola confucionista da dinastia Qing. Este pretendeu regressar às origens, afastando-se propositadamente dos neo-confucionistas dos períodos Song e Ming, cujas teorias estão impregnadas de ideias daoístas e budistas.

Dai Zhen foi um filósofo que teve a felicidade de ser reconhecido no seu tempo, apesar de ter reprovado cinco vezes nos exames imperiais. Nunca chegou a mandarim, mas contribuiu decisivamente para a cultura do seu tempo, nos campos da matemática, geografia, fonologia e, naturalmente, da filosofia.

A obra PESQUISA DO BEM, como o próprio título indica, é muito influenciada pelas teorias de Mengzi, ou, à portuguesa, de Mâncio.

Para Mengzi (372-289 a.C), o homem é bom por natureza, por isso a bondade é a virtude-fundamento da humanidade. Ora Dai Zhen, já em pleno século XVIII vem contribuir para recuperar e desenvolver esta linha de pensamento avançada no século III a. C.

Para o filósofo, o bem é uma teia composta por três virtudes: a benevolência, a justiça e a propriedade. Só o homem bom, justo e correcto vive humanamente. Por isso, deve cultivar, antes de mais, a benevolência, que é a raiz de todas as outras virtudes. Esta define-se, ao nível corpóreo, como uma força criadora, que actualiza as forças criadoras do Céu e da Terra, também elas benevolentes. Estas conjugam-se entre si e com o homem numa harmonia pré-estabelecida.

Assim, o Céu é criativo, a Terra receptiva e “quem adquire a força produtiva do Céu e da Terra é benevolente. Quem obtém os princípios de ordem e da razão, é sábio” (Tai Chen’s Inquiry into Godness, Honolulu, East-West Center Press, 1971, p. 69).

Os princípios morais advêm da sábia conjunção da razão e da sensibilidade. Com Dai Zhen, a bondade passa a ser perspectivada em termos de força produtiva, mas sem prescindir de um enquadramento racional. Este é um grande avanço para o aparecimento de uma nova filosofia chinesa, que procurará colmatar o fosso criado por posições filosóficas extremistas, defensoras de idealismos e materialismos exacerbados.

Assim, papel de destaque conferido à bondade não leva o filósofo a esquecer que os desejos, sobretudo quando absolutizados, podem ser verdadeiramente perniciosos, por isso defende sempre a acção condutora e auto-controladora da mente nos assuntos humanos.

No entanto, a razão não entra em conflito com a sensibilidade, muito pelo contrário: a bondade, enquanto força – e força de amor – é a “virtude mais elevada”(p. 70), não se limita à esfera humana, estende-se a todo o universo: “a força produtiva do Céu e da Terra assenta na benevolência” (p. 71)

Mas em que consiste exactamente esta benevolência universal que o filósofo iluminista defende?

Ela é uma força e pode ser definida como desejo. Que os homens e toda a natureza tenham desejos, nada de mais natural para Dai Zhen, com uma ressalva: estes desejos para serem realmente bons, isto é, para estarem de acordo com a ordem da natureza, não podem ser egoístas. Diz-nos o filósofo: “ Quem tenha desejos sem egoísmo, é benevolente” (p.72).

Se pensarmos bem, o que tem dado ao desejo tão mau nome, apesar de todas as tentativas de salvação, vindas nomeadamente da área psicanalítica ocidental, é o facto de ele se expressar como uma força individual, poderosa, avassaladora mesmo, com tendência a assumir-se totalitariamente naquele em que faz a sua aparição.

Alguém cegamente possuído pelo seu desejo torna-se egoísta e insuportável para os outros. No entanto, já alguém que lide sabiamente ou racionalmente com a sua sensibilidade, é um sábio, porque deixou falar em si todos os aspectos da sua natureza.

O homem só é verdadeiramente superior quando faz com que “os seus desejos se conformem aos princípios da razão e da correcção “(p.97). Mais do que recalcar os instintos, interessa controlá-los e tirar o melhor partido deles, porque, não esqueçamos, é na sua força que se manifesta a virtude da benevolência.

Esta força tão boa, tão positiva, encontra-se um pouco por toda a parte, por exemplo: “no crescimento dos troncos, das folhas, dos botões e dos frutos das árvores(…), por isso a capacidade da actividade criativa é chamada benevolência”(p.74)

Segundo o filósofo, a natureza do homem – com os seus desejos, sentimentos e poder racional – não podia ser melhor. Há até um acordo básico entre toda a natureza, uma harmonia pré-estabelecida à maneira de Leibniz, que coopera para tornar a vida fácil àquele que, não só deixa falar a sua natureza benevolente, os seus desejos, como também procura desenvolver a sua pessoa, seguindo o exemplo dos sábios e o estudo aturado dos clássicos.

“O caminho de suster e manter a vida encontra a sua chave em desejos, o caminho da simpatia e profunda compreensão encontra a sua chave em sentimentos. Isto porque os desejos e os sentimentos são os signos do natural.”(p. 75) E, um pouco adiante: “Os desejos formam o caminho do Homem, estão enraizados na natureza humana e encontram expressão no dia-a-dia”(p. 76). Nada têm de vergonhoso ou pecaminoso, traduzem-se em expressões amorosas que temos para com os amigos, os familiares e os filhos. Para este filósofo tão inovador, quando expressamos a nossa natureza em equilíbrio, estamos a cultivar o caminho do Céu.

O pior inimigo da benevolência é, como já referi, o egoísmo e o seu maior amigo a lealdade. O Céu ao dar e a Terra ao receber estão a ser benevolentes. O homem, se proceder de acordo com eles, também dá e recebe. Logo, o melhor antídoto para o egoísmo, que mata a benevolência, é justamente o altruísmo. A natureza contém em si os princípios da razão e da bondade, há que segui-los sem medo, sendo fácil e simples como ela.

O homem de Dai Zhen, este todo sensível e racional, tem que lutar contra dois inimigos. Um deles já conhecemos, situa-se ao nível da sensibilidade e é o egoísmo, que se define como satisfação exclusiva de desejos privados; o outro, é a confusão que se apodera das mentes, ao entrarem em contacto com os outros e com o mundo. Ora um homem confuso torna-se facilmente iludível e estúpido, o remédio para contornar este obstáculo mental está na educação e no estudo.

Resumindo, libertamo-nos da confusão por meio do estudo e auxiliados pela virtude da fé e libertamo-nos do egoísmo através de acções leais e compassivas, atingindo assim o núcleo da teia de virtudes formada pelo bem: “sendo leais, podemos agir com benevolência, tendo fé podemos realizar a justiça e possuindo compaixão, no que diz respeito às outras pessoas, podemos praticar a propriedade”(p. 101)

Mas não esqueçamos que, para o filósofo, o “protótipo” das virtudes é a benevolência, esta força altruísta que pode ser desenvolvida com lealdade: “um homem que tem os seus próprios desejos e que também tem em consideração os desejos dos outros, é benevolente. Um homem que tem os seus próprios sentimentos e, também, tem em consideração os sentimentos dos outros, é sábio”(p.105).

Logo, depois das máximas humanas ‘amai-vos uns aos outros’ e ‘não faças aos outros o que não queres que te façam a ti’, creio que podemos avançar com nova, desta vez inspirada neste filósofo tão original: faz aos outros aquilo que eles benevolentemente desejem.

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