José Duarte de Jesus, autor de “Eduardo Mondlane – Uma voz silenciada”: “Mondlane incomodava a extrema-direita”

Desde 2010 que José Duarte de Jesus se debruça sobre os contornos misteriosos do assassinato de Eduardo Mondlane, fundador da FRELIMO morto em 1969 em plena Guerra Colonial. O novo livro do antigo diplomata, recentemente lançado em Lisboa, apresenta novas informações que apontam para potenciais autores do assassinato

 

Este livro nasce de investigações que levaram à publicação de duas obras. Como surgiu o interesse em investigar Eduardo Mondlane e o seu assassinato?

Tive de deixar a carreira diplomática durante nove anos precisamente por ter tido um contacto com Eduardo Mondlane quando estava colocado em Bona [Alemanha], em 1963. Era um jovem diplomata, segundo-secretário da embaixada, vivia num hotel, e aí estudava um homem com quem me dava, um tunisino secretário-geral dos movimentos sindicais de África. Um dia, conversando sobre a Guerra Colonial, entrámos em desacordo, e ele disse-me que eu tinha de falar com Eduardo Mondlane, que teria uma proposta interessante a fazer-me, algo que seria importante. Ele estava em Nova Iorque e falámos ao telefone. Basicamente, a proposta era que a FRELIMO estava disposta a iniciar a Guerra Colonial em Moçambique. Se Portugal estivesse na disposição de iniciar negociações sem agenda prévia, preferencialmente num país que não esteja subordinado nem à URSS nem aos Estados Unidos, e ele propunha a Tunísia. Íamos ver o que as negociações davam. Expus esta questão ao embaixador, porque eu não tinha capacidade, como segundo-secretário, de enviar a proposta para Lisboa. O embaixador ficou de cabeça perdida e disse-me: “Nem pense nisso, você está a ser instrumentalizado por um terrorista, não mando nada para Lisboa”.

E o que fez então?

Achei que o assunto era importante e resolvi fazer algo que ia um pouco contra a disciplina, e mandei um relatório sobre o assunto directamente ao ministro [dos Negócios Estrangeiros], que na altura era Franco Nogueira. Entretanto, fui transferido para Lisboa e um dia Franco Nogueira chamou-me ao seu gabinete, o que me deixou surpreendido. Disse-me que a PIDE andava atrás de mim e que a situação poderia ser grave, pelo que me aconselhava a deixar o país nas próximas 24 horas. Disse-me que isso se devia ao relatório que eu tinha enviado sobre Mondlane. O ministro disse-me que tinha lido o documento com interesse, mas que no Ministério nem todos tinham tido essa opinião e alguém me tinha denunciado à PIDE. Ele garantiu-me que enquanto fosse ministro eu teria sempre passaporte diplomático. Estive então nove anos fora, vinha a Portugal só férias e apenas voltei definitivamente depois do 25 de Abril de 1974. Após a morte de Salazar recebi um telefonema de Rui Patrício, que era ministro na altura, a dizer-me que sabia que tinha havido alguns problemas que levaram à minha saída do país, e disse-me estar disposto ao meu reingresso na carreira diplomática, mas não fui. É essa a minha ligação a Mondlane, por causa dele, de certa forma, tive de abandonar a carreira diplomática.

Mas depois de se aposentar escreveu muito sobre ele.

Sim, fiz muitas entrevistas ao Adriano Moreira [ex-Ministro português do Ultramar], que conhecia pessoalmente Eduardo Mondlane. A certa altura ele disse-me que eu deveria fazer uma tese de doutoramento com aquele trabalho. O livro saiu em 2010 [Eduardo Mondlane – Um Homem a Abater], eu doutorei-me em 2007, mas continuei a escrever sobre ele. No primeiro livro coloquei cinco hipóteses de quem teria estado por detrás do assassinato. Depois de mais uma série de investigações, sobretudo no Arquivo de Defesa Nacional, achei que tinha elementos que me levam a concluir que só pode ter sido uma pessoa a arquitectar a sua morte.

E quem foi?

Foi a PIDE, juntamente com a AGINTERPRESS [agência noticiosa que escondia uma organização secreta de extrema-direita] numa operação chamada “Operação Zona Leste”, uma acção secreta assinada em Luanda.

O assassinato visava apenas travar o movimento independentista em Moçambique?

Sim, claro. Na minha opinião havia dois homens que eram, talvez, os mais perigosos para a extrema-direita portuguesa, e que eram, precisamente, os mais moderados. A extrema-direita portuguesa e os pides, depois da morte de Salazar [com Marcelo Caetano como Presidente do Conselho], tinham imenso medo que Caetano entrasse em diálogo e viesse a declarar possíveis independências [nas antigas colónias portuguesas]. Ele [Marcelo Caetano] falou mesmo, num discurso, em autonomias, e isso preocupou muito toda a gente ligada à extrema-direita, à Legião Portuguesa e à PIDE. Por isso, penso que era preferível matar um homem que pudesse vir a criar um diálogo, algo impensável para a extrema-direita. O Amílcar Cabral foi outro caso. Era o segundo líder independentista, capaz de alcançar possíveis diálogos. Ambos eram homens com uma capacidade intelectual maior [para entrar em negociações em prol da independência de Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau] e propícios para a extrema-direita liquidar e pôr de parte.

A FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique, movimento e partido fundados por Mondlane], tinha uma frente maoísta. Esta era a única ligação à China existente neste contexto?

Mondlane foi convidado para ir à China. Havia elementos maoístas [na FRELIMO], mas não havia propriamente uma coisa que se pudesse considerar uma frente maoísta. Havia pessoas mais ligadas à URSS do que propriamente à China.

Relativamente à visita de Eduardo Mondlane à China, em que contexto aconteceu e quais as motivações para ambas as partes?

A China sempre manteve uma grande neutralidade, tal como hoje. Pequim tanto ajudava os movimentos mais à esquerda como os que estavam mais ao centro. Enquanto a URSS financiava movimentos ligados aos soviéticos em várias colónias, a China financiou todos. Os EUA financiavam, no caso de Angola, a UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola], enquanto a URSS financiava o MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola]. A China financiava os dois, e a sua estratégia era, no dia em que houvesse independência, o país estaria bem com todas as ex-colónias. O mesmo aconteceu com Moçambique. Embora Mondlane fosse considerado um homem ligado aos Estados Unidos, onde tinha sido professor, ex-funcionário da ONU, foi à China e foi recebido ao mais alto nível. Mondlane tinha uma ideia semelhante à China, um país que, na altura, estava de candeias às avessas com a URSS. Mondlane queria estar numa posição de neutralidade face às três potências que, naquela altura, tentavam ajudar os movimentos [pró-independência]. Mondlane teria uma visão estratégica de que a URSS iria desaparecer a prazo, como aconteceu, e o objectivo era a independência de Moçambique sem que o país ficasse subordinado a uma das potências.

A morte de Eduardo Mondlane e também de Amílcar Cabral levantam ainda muitas questões? O seu livro vem mostrar que é preciso fazer as pazes com esse passado, investigar mais?

A minha ideia [de publicar o livro] está muito ligada a uma filosofia do ponto de vista político, que é o facto de não podermos viver sob mitos do passado. Nunca podemos compreender o presente e trabalhar um pouco para o futuro sem conhecer o passado. Normalmente, tudo se passa de forma evolutiva. Julgo que é importante clarificar, o mais possível, o passado para percebermos que não existem apenas bons e maus. Clarificar o passado ajuda-nos a perceber a FRELIMO actual e os movimentos que actualmente são governos nos respectivos países. A família Mondlane, de quem fiquei amigo, também me ajudou a compreender uma série de coisas e a não ir por mitos ou relatos fáceis do que aconteceu. Uma das coisas de que me apercebi, e que não me era evidente, é que Mondlane incomodava essencialmente a extrema-direita [em Portugal], e não a extrema-esquerda. Porquê? A extrema-direita tinha medo que Marcelo Caetano entrasse em negociações. O facto de Mondlane ser moderado leva-nos a pensar que a extrema-direita poderia gostar mais dele, mas é exactamente o contrário.

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