Paulo Duarte, académico: “China molda a economia mundial”

Paulo Duarte co-edita o mais recente livro sobre a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” com a chancela da Palgrave, intitulado “The Palgrave Handbook of Globalization with Chinese Characteristics – The Case of Belt and Road Initiative”. Em entrevista, o académico defende que a China já deveria ter estatuto de economia de mercado e que o país vive com a Rússia uma relação puramente estratégica com foco na questão de Taiwan

 

A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” foi apresentada por Pequim em 2013. Como olha para a sua evolução até aqui?

É preciso reconhecer que a economia, sobretudo a chinesa, já não cresce como crescia. Passamos por uma situação menos positiva, não apenas devido à covid-19, mas também devido à guerra [na Ucrânia]. No caso da China, que é a fábrica do mundo, gerou-se muita ambição quando, na prática, a pandemia veio arrefecer esses investimentos e muitos deles ficaram parados. Outros estão em progresso. O que me fascina como investigador é ver como todos estes projectos à escala regional, nacional e transcontinental vão moldando a economia do mundo. Este livro ajudou-me a aprender mais sobre a capacidade de a China incorporar, no seu projecto terrestre e marítimo, a Rota da Seda digital. A China percebeu que não é só o mar que é importante para o comércio, mas as redes digitais também são uma fonte extraordinária de ganhos, tendo lançado, assim, a terceira componente da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, em 2015. O livro procura uma visão do todo que é essa interdependência entre terra, mar e digital. Focamo-nos se os projectos vão ou não demorar, mas tudo feito e planeado a longo prazo já mudou a fisionomia do mundo e das redes de comunicação, e vai continuar a fazê-lo.

De que forma concreta “Uma Faixa, Uma Rota” tem mudado a economia mundial?

A China esteve muito tempo fechada ao mundo. Foi Deng Xiaoping, justamente com a ideia de “Um País, Dois Sistemas” que a abriu ao mundo. Curiosamente, introduziu o capitalismo dentro do comunismo, de maneiras que temos hoje uma China voraz, não só em termos de recursos energéticos, mas de aquisição de grandes activos em grandes empresas. Esse é o comportamento tradicional do país, que raramente cria algo do zero e que prefere investir em empresas já existentes onde procura comprar grandes activos, como a EDP em Portugal. A empresa foi considerada um activo estratégico e só assim é que não passou para as mãos de chineses, mas não foi isso que aconteceu com o Porto de Pireu, na Grécia. Vejamos também o caso do porto de Hamburgo, na Alemanha. A China consegue, através do uso dual, fazer descargas e cargas em portos e, ao mesmo tempo, levar a cargo actividades de “intelligence” ao longo dos portos onde vai atracando. Falo de aquisição massiva de infra-estruturas, de recursos energéticos, consenso de Pequim, com a ajuda ao desenvolvimento dos países desprovida de condicionalidades, ao contrário do que é o modelo ocidental, em que primeiro se requerem reformas democráticas e depois ajuda-se ao desenvolvimento. Mas a China já está a aprender com situações que correram mal.

Tais como?

A queda de Khadafi, na Líbia, como por exemplo. O país vai-se distanciando do princípio da não interferência. O que vamos ver no mundo é uma China que compra muito, vende massivamente. Falávamos da globalização, e a China beneficiou bastante com o facto de ter aderido à Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001. Por esta altura, já deveria ter o estatuto de economia de mercado, mas ainda não tem. Mas isso não impede o país de continuar a ser a fábrica do mundo. Portanto, a China beneficiou da globalização, investe massivamente um pouco por todo o mundo e vai construindo, em paralelo, uma rede portuária para apoiar a sua marinha mercante e servir de abastecimento à sua marinha de guerra. A par desta globalização com características chinesas é possível que vejamos a geoestratégia a acompanhar a geopolítica. A China está a fazer o que os EUA fizeram há muitas décadas, que é construir as bases, com calma, no mundo. A China percebeu que o mar é fundamental numa estratégia de globalização e de protecção das rotas marítimas.

Porque é que o país não tem ainda o estatuto de economia de mercado?

Para todos os efeitos, estamos a assistir a uma guerra comercial. Os produtos de qualidade média e alta têm dificuldade em competir com os produtos chineses, e a guerra tem essa razão de ser. É um conflito entre os EUA e a China que nos envolve a todos directamente. Se por esta altura a OMC desse o estatuto de economia de mercado à China, seria mais fácil ao país do que já é competir livremente com produtos dos EUA e de outras partes do mundo, nomeadamente da União Europeia, onde os produtos têm uma boa qualidade. Isso é uma espécie de travão que serve para mitigar esses efeitos colaterais do dumping, da competição muitas vezes desleal, as falhas em muitos produtos. A meu ver, é uma forma de proteger os produtos ocidentais. É isso que impede a China de ter neste momento uma economia de mercado enquanto o país não fizer as reformas que o Ocidente espera que faça, nomeadamente ao nível da protecção dos direitos de autor. A China tem vindo a implementar reformas aos poucos, mas acha-se que ainda não é suficiente.

De que forma o conflito na Ucrânia alterou a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”?

Qualquer conflito, na Ucrânia ou Síria, é importante. A Ucrânia por ter sido o celeiro da União Soviética e a Síria por questões energéticas. A questão alimentar preocupa a China, que não vai ao estrangeiro apenas à procura de recursos energéticos, mas também à procura de alimentos. Os chineses destruíram de forma massiva, ao longo das últimas décadas, o meio ambiente, e hoje temos 28 mil rios que desapareceram e o ar ainda muito poluído, embora a China esteja a adoptar práticas mais amigas do ambiente. Só sete por cento das terras na China são aráveis. A Ucrânia desempenha aqui essa função, como o Brasil e outros países, de grandes produtores alimentares, mas até vou mais longe. A Ucrânia é importante, neste caso pela negativa, pela desproporção das cadeias de abastecimento entre o Oriente e o Ocidente. A China, sendo parceiro da Ucrânia, não tem interesse nenhum nesta guerra que acaba por tocar na economia, mas é uma guerra, acima de tudo, geopolítica. A China precisa de um aliado na construção do mundo que passe por uma alternativa ao mundo ocidental. Esse aliado, para o bem e para o mal, é Putin. Seria um dos poucos que viria ao auxílio da China caso houvesse um confronto em Taiwan. Talvez também o Irão ou a Coreia do Norte. Além de comprarem petróleo mais barato à Rússia, os chineses sabem que, do ponto de vista geopolítico, precisam de aliados. Não é benéfico para ninguém que a guerra se arraste demasiado, inclusivamente para a própria Rússia. Também a China não é alheia a esta perturbação das cadeias de abastecimento.

A China está, portanto, a tentar equilibrar vários factores relativos ao conflito ucraniano, mantendo uma posição estratégica com a Rússia, com o foco em Taiwan.

Sim, sem dúvida, esse é o principal factor. A Rússia e a China desconfiam um do outro. Os multimilionários e turistas russos não vão propriamente para a China, vão para o Ocidente. É um casamento de conveniência. Que outra saída teria a Rússia se não fossem os chineses a subsidiar esta guerra, uma vez que os europeus fizeram cortes? Se não fosse a grande China a comprar, o que poderia fazer Putin, que está praticamente isolado em todo o mundo? Pouco. Mas essa desconfiança existe e encontra nesta crise uma oportunidade. Sabemos que esta ligação entre a Rússia e a China é meramente conjuntural porque, terminando esta guerra, e ninguém sabe quando vai acontecer, não temo dizer que Putin vai querer retomar os mercados ocidentais. A China, aqui, é meramente circunstancial.

É co-autor de um artigo, neste livro, sobre a presença do Atlântico-sul na política de globalização da China, onde se inclui Portugal. No contexto de “Uma Faixa, Uma Rota”, como descreve as relações entre os dois países? Há espaço para inovação?

Nesta relação, a questão de Macau é importante e temos também a CPLP. O único senão é o facto de Portugal pertencer ao Ocidente, à NATO, à União Europeia (UE) e com laços transatlânticos com os EUA. Tivemos uma espécie de lua-de-mel da China com Portugal a partir de 2012, na altura da troika, em que a China não tinha propriamente interesse num mercado como o nosso, mas foi investindo ao ponto de tornar Portugal num estudo de caso na UE pela grande receptividade que estávamos a mostrar face à China. Depois da visita a Portugal de Xi Jinping, cerca de 18 acordos foram assinados, fazendo de Portugal uma excepção. Desde emitir dívida pública portuguesa em moeda chinesa, a criar um laboratório com vista à produção de micro-satélites, à própria política dos vistos gold. Houve depois uma pressão intensa dos EUA e a pandemia, bem como a questão da guerra, que fez com que Portugal tenha voltado à sua política externa dita “convencional”, de apoio aos EUA. Todos esses factores levaram ao fim da lua-de-mel que parecia promissora.

O conceito de “Globalização com características chinesas” poderá ter influências nos próximos tempos, com o conflito na Ucrânia, por exemplo?

Se olharmos para a China como aquele actor que planeia a longo prazo, vão surgir sempre guerras e conflitos, ou crises, mas esse projecto de “Uma Faixa, Uma Rota” continuará no espaço e no tempo. É muito difícil parar a China, sendo que hoje em dia as famílias podem ter até três filhos. Isto não é uma brincadeira. Se o planeta já era escasso em recursos, veremos agora uma deslocalização da China para a zona do Atlântico-Sul, para aqueles países mais distantes, à procura de alimentos e energia. Não é por acaso que se houve falar do interesse da China numa base naval na Argentina ou na Guiné-Equatorial. A China vai negociar com esses estados para ter capacidade de introduzir a sua diáspora. Se há coisa que o país aprendeu é que não pode ter base apenas na China, mas sim em todo o mundo. A China tem de ter bases navais mais perto dos locais de risco.

 

Olhar global

“The Palgrave Handbook of Globalization with Chinese Characteristics – The Case of the Belt and Road Initiative” [Manual Palgrave da Globalização com Características Chinesas – O caso da Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota” é uma edição conjunta de Paulo Duarte, académico da Universidade Lusófona do Porto, Francisco José Leandro, da Universidade de Macau, e Enrique Gálan, do Asian Development Bank. Com a participação de dezenas de autores de várias nacionalidades, o livro faz o retrato global da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” nas vertentes diplomática, económica e política e dos vários polos de investimento que se foram formando desde 2013 graças à aposta chinesa em vários países. Destaque para a participação de vários académicos portugueses, como é o caso de Carmen Amado Mendes, Cátia Miriam Costa, Luís Tomé, Jorge Tavares da Silva, entre outros.

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