A profundidade dos ideofonogramas

Em um artigo muito interessante, o linguista francês Louis-Jean Calvet, refletindo sobre Lacan e a escrita Chinesa: um inconsciente estruturado como escrita?, faz-nos saber de um outro artigo em que seu autor, François Cheng discorre a respeito da escrita poética chinesa. Cheng dirá, a partir de versos do ilustre Wang Wei, que em determinadas composições — como a que usa de exemplo — é possível perceber “a presença subliminar e obsedante do homem (人)” (Calvet, 2012: 257). Eis o verso wangweiano:

木 末 芙 蓉 花

Cheng assim traduz o verso: “na ponta dos galhos flores de hibisco”.

Como se vê, a presença efetiva do homem (人) se encontra apenas no final do verso (e, ainda aqui, apenas como componente de um de seus elementos parciais, a saber, 化, parte de 花), enquanto sua subliminaridade está difusa, compondo os demais caracteres. Calvet bem observa: “De fato, o signo do homem só aparece no quinto caractere, e nos outros se pode ver o homem nas raízes de uma árvore…” (Calvet, 2012: 257).

Ora, o linguista está interessado em compreender alguns problemas da escrita chinesa, ideogrâmica — ou, a bem dizer, ideofonogrâmica —, um deles sendo o que chamou de “‘profundidade’ do signo gráfico chinês, o que ele pode ‘dizer’ nele mesmo, sem referência à forma [fônica] pela qual é pronunciado: 妻 significa ‘esposa’ e representa uma mulher e uma vassoura, 安 significa ‘paz’ e representa uma mulher sob um teto, uma mulher no lar, etc.” (Calvet, 2012: 257-258).

A discussão que envolve tal problema da “profundidade” é a que, desde o princípio do artigo, o linguista procura deslindar: a partir de certas considerações psicanalíticas de Jacques Lacan — de que o inconsciente seria estruturado como uma linguagem, por exemplo —, Calvet procura compreender as inter-relações entre psicanálise, linguística e escrita ideofonogrâmica, recordando-nos uma vez mais que a ênfase desmesurada na grafia — que já apresentamos em outra ocasião — faz ignorar o elemento sonoro da língua chinesa. Por isso Lacan afirmaria o que afirmaria, e Huo Datong, psicanalista chinês, avançaria sua própria afirmação para dizer que não era bem o inconsciente chinês que fosse estruturado como a escrita, mas o inconsciente que era, este sim, estruturado como a escrita chinesa.

Seja como for, o problema da “profundidade”, como dizíamos, é o que nos interessa mais de perto. Veja-se, por exemplo, 木 (mù), árvore, primeiro caractere no verso de Wang Wei. Tomado o problema da “profundidade”, teríamos na árvore a presença do homem, nos dois traços que descem perpendiculares ao eixo central. Contudo, uma rápida ida ao dicionário nos faz imaginar se não terá sido a própria leitura — poética e psicanalítica, claro está, mas ainda assim… — de François Cheng que viu ali um ser humano subjacente.

Porque, conquanto os traços perpendiculares possam mesmo fazer pensar em 人 (ren), o dicionário nos informa que os componentes de 木 são, em verdade, 十 (shí) e 八 (ba). Ou seja, a presença humana ali nos versos, embora poeticamente justa, não deixa de nos indicar também uma predominância — que já sabemos ser centenária — da grafia chinesa sobre quaisquer outros componentes linguísticos. Como por exemplo o elemento fônico, a sonoridade que compõe inclusive a lógica diferencial e composicional da escrita chinesa, a que nosso autor bem chama a atenção (Calvet, 2012: 249-ss).

É certo que o fazer artístico, a imaginação psicanalítica e a licença poética sempre subverterão os elementos, por assim dizer, mais materiais e objetivos dos sistemas linguísticos: não importa se o que compõe a árvore é oito (八, ba), e não homem: sempre haverá quem veja o humano subjacente ao mundo, talvez por ser, esse alguém, um humano por seu próprio direito.

Referência

Calvet, Louis-Jean, (2012). Lacan e a escrita Chinesa: um inconsciente estruturado como escrita?. Alea: Estudos Neolatinos, 14(2),245-259. Recuperado de: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=33025116007

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