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Quem ainda persiste nessa Cidade do Nome de Deus foi talvez em busca de um Oriente metafísico ou, mais prosaicamente, dessa outra luz que é o ouro das patacas. A cada qual seu oriente, e talvez não haja melhor oriente do que esse “Oriente ao oriente do Oriente” de que falava Álvaro de Campos, e que não é mais do que o próprio Ocidente. Afinal, o único oriente que fica depois do Oriente, feita a volta, só pode ser o Ocidente, enfim reencontrado.

Vem isto a propósito de um recente livro de poesia (Tomás Sottomayor, Auberge Ravoux. Lisboa: Língua Morta, 2021) publicado em Portugal, que merece ser saudado por apontar para um mundo e para matrizes radicalmente diferentes dos que hoje se acham na jovem poesia portuguesa.

Não se aproxima dos temas luso-orientais que nos têm ocupado, mas o seu autor lembra-nos aqueles que como Pessoa, começaram por um orientalismo esoterizante (ou um esoterismo orientalista) e que se foram transferindo para as tradições do esoterismo e do hermetismo europeu (Hermetismo, Cabala, Alquimia, Rosacrucianismo), o que de alguma forma este livro também dá conta (não dessa passagem, mas apenas da segunda parte). Haverá sempre aqueles que preferem o Oriente ele mesmo, mas talvez os mais interessantes de todos sejam aqueles que desde logo encontram no Ocidente o seu Oriente.

Nos seus melhores momentos, como nos poemas em prosa dispersos pelo livro, Sottomayor consegue um tom próprio, com uma forte coesão de imagens: “Lentamente aflora um girassol no ventre./ Bebe a chama das raízes e consuma/ a alquimia com o rosto de criança./ Respira, e assim o laço está feito./ O nó foi consagrado sem olhos./

Já não pode evolar” (p. 10). O veio aqui ferido é a lírica “espiritual” europeia, partindo de exemplos de Camões e mesmo da tradição trovadoresca em seus enlaces com a poesia tradicional, com vista às exemplaridades simbólicas e religiosas do amor heterossexual.

No livro, isto depende diretamente de um vocabulário em caixa alta, como em Ângelo de Lima e nos modernistas portugueses, que serve não só para explorar o simbolismo metafísico-religioso de linhagem rilkeana (Criança, Anjo, Fonte, Sopro, Céu), mas também visando uma linguagem conceptual ou para-filosófica que redunda num excesso de substantivos abstratos (Perenidade, Corporalidade, Virtualidade, Infinito).

É contudo este último um registo demasiado pesado para o seu próprio discurso lírico, e que o livro suporta mal. Por outro lado, o espiritual decai uma ou outra vez em moral, ou moralista, quando fala da suposta decadência espiritual do mundo contemporâneo: a escravidão do homem de hoje às coisas (p. 50-51), quando não há, nem nunca houve, homens sem coisas nem coisas sem homens. Onde está a decadência num mundo que sempre assim se nos apresentou? Entre um escaninho dum mestre flamengo e um iPhone que diferença real existirá?

É assim uma voz em construção, ainda não inteiramente solta das suas referências. São algumas vezes visíveis as costuras dos seus nós, como por exemplo no poema da p. 20, verdadeira reescrita de temas e material verbal de Hoelderlin.

Mas o livro vai se adensando ao passar a leitura, movido por uma visão (e é da tradição da Poesia como Visão superior que se trata, p. 41) cósmica e amorosa, até mesmo órfica (p. 40), com momentos já plenamente conseguidos: “Do seio da noite arqueada/Taciturno sorvo o leite negro/ De tudo o que se perdeu./Ajoelho-me sob o peso da tua mão/E aguardo o sinal para que a minha/Se mova sem hesitação/Para arquear um novo céu./Tenho um desejo insular/Por mundos invisíveis” (p. 39).

Um poema como este cifra uma situação que vem das cantigas de amor provençais: a submissão encenada do homem-vate a uma mulher que é, sem deixar de ser carnal, uma instância essencialmente espiritual, que dá o signo ou o sinal ao seu amante para que perfaça a operação mental da poesia. É certamente fora do vulgar nos dias de hoje e coloca Tomás Sottomayor na esteira de uma tradição de que saberá colher frutos imprevistos, e de que é já fruto.

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