Confinamento | Medida condiciona futuro de crianças com necessidades especiais em Macau

Caso sejam impostos confinamentos sempre que haja um surto de covid-19 em Macau, o desenvolvimento futuro de crianças com necessidades especiais pode ficar comprometido devido à ausência de rotinas, contacto com terapeutas qualificados, equipamentos e contacto humano. Quem o diz são especialistas que afiram que “criar crianças por videoconferência” não é solução   

Especialistas consideram que se for imposto o confinamento da cidade cada vez que Macau registar um surto de covid-19, as autoridades estarão a condicionar “de forma significativa” o futuro das crianças com necessidades especiais. Lam, de 12 anos, tem uma perturbação do espectro autista. Nos últimos dois anos e meio, este jovem de Macau, que frequenta o ensino especial, viu aulas e sessões de apoio suspensas e passou longos períodos em casa, à frente do computador, a aprender à distância.

 

O contacto com o espaço escolar e terapeutas qualificados, parte de uma rotina necessária ao desenvolvimento de crianças com necessidades especiais, foi interrompido com o aparecimento da covid-19.

 

Aconteceu mais do que uma vez: no final de Janeiro de 2020, por exemplo, as escolas fecharam durante praticamente meio ano – Lam esteve três meses sem aulas e outros três com ensino à distância – e, no ano seguinte, em Setembro, foi ordenado o encerramento das instituições na sequência de duas novas infecções.

Macau voltou a fechar-se, mais recentemente, a 18 de Junho, com um novo surto, que infectou 1.821 pessoas, na maioria assintomáticas, e que causou seis mortes, todos idosos com doenças crónicas.

 

À semelhança do Interior da China, Macau segue a política de ‘zero casos’, impondo, por isso, restrições à mobilidade da população, várias rondas de testagens massivas e quarentenas forçadas. E para Lam, isso significou terminar o ano lectivo quatro semanas antes.

 

“Parou tudo, a escola parou, os centros [de terapia] encerraram, e nós aderimos a umas aulas organizadas por associações, mas que não são profissionais”, conta à Lusa a mãe, Ruby Hui, a quem coube, nestes quase três anos, suprir a responsabilidade dos professores e terapeuta “para que não houvesse um retrocesso” no desenvolvimento do filho.

 

Apesar de assumir que “sem acompanhamento [profissional] presencial, o progresso é difícil” para qualquer criança com necessidades especiais, Ruby acredita que, para crianças mais novas, a situação poderá ter implicações mais graves.

Ligações cortadas

 

Aos 12 anos, Lam já percorreu a fase em que é necessária maior assistência qualificada, esclarece Ruby, lembrando que, entre os dois e os seis anos, a família passava todos os fins de semana em Hong Kong em sessões de terapia – tratamentos que, nota, ainda escasseiam em Macau.

 

Com a imposição de quarentenas a quem viaja entre Macau e Hong Kong, a consulta de especialistas da região vizinha, ou a vinda destes a Macau, não voltou a normalizar, facto que levou, aliás, a deputada da Associação dos Operários, Ella Lei, a confrontar o Governo, em julho de 2020, sobre a escassez de terapeutas da fala em Macau, numa altura em que os profissionais de Hong Kong, contratados para “atenuar a carência”, não conseguiam deslocar-se ao território.

 

Dois anos passaram, pouco mudou. A quem chega a Macau de Hong Kong é exigida uma quarentena de sete dias num hotel local. A Associação Promotora da Educação Especial para Alunos com Necessidades de Ensino Especial propôs, entretanto, às autoridades locais virarem-se para o outro lado da fronteira, a China continental, nomeadamente para fazer tratamentos ou adquirir dispositivos de assistência, como cadeiras de rodas ou andarilhos, para crianças com deficiência física.

 

Aparelhos que “não se produzem em Macau e têm um custo muito elevado”, indica à Lusa o vice-presidente desta associação, Alex Chao, referindo que do Governo não chegou resposta.

 

“As crianças têm um desenvolvimento físico rápido na infância e, se não tiverem o melhor equipamento terapêutico (…) durante este período, isso vai ter um grande impacto nos problemas de saúde física”, reforça o responsável.

 

Alex Chao chama ainda atenção para as sequelas que podem aparecer em crianças com necessidades especiais que permanecem confinadas em casa: “Muitas vezes, parar demasiado tempo, faz com que tenham maiores flutuações psicológicas e que as emoções e comportamentos adquiram formas fora do padrão regular”.

 

Durante este último surto, por exemplo, a população foi aconselhada a ficar em casa, além de que parques e outros espaços públicos estiveram encerrados. E estas são crianças “que precisam de actividades em comunidade e contacto humano, de forma a poderem comunicar e progredir”, explica Chao.

Dependentes do ecrã

 

Além disso, acrescenta Joana Pereira, professora do primeiro ciclo na Escola Portuguesa de Macau (EPM), o confinamento veio acentuar a ligação das crianças aos ecrãs, seja em lazer ou, no caso do período escolar, com as aulas à distância.

 

“Estamos a proporcionar situações em que as obrigamos a passar ainda mais tempo agarrados a este tipo de equipamentos electrónicos e eu penso que, do ponto de vista de desenvolvimento pessoal e social, é muito castrador”, refere a docente portuguesa, com formação e experiência na área da educação especial.

“Estamos a criar crianças por videoconferência”, acrescenta.

 

Recentemente, o director dos Serviços de Saúde de Macau, Alvis Lo, admitiu durante uma conferência de imprensa que “no futuro pode surgir novo surto” que obrigue a cidade a voltar a impor restrições à mobilidade.

 

Joana Pereira avalia as implicações de mais paragens no universo escolar: “Isso sim, vai condicionar de forma significativa a aprendizagem e o desenvolvimento dessas crianças. De todas, mas muito mais dessas crianças”, admite.

 

A professora do primeiro ciclo, que contou no ano lectivo passado com quatro alunos inclusivos, recorda à Lusa que, com as sucessivas pausas educativas, o retrocesso na aprendizagem “notou-se imenso”: “Tive alunos que, na passagem do segundo para o terceiro ano nem o nome sabiam escrever, porque é algo que faz parte das rotinas diárias, mas que eles já não faziam, porque em casa não havia necessidade de o fazer”.

 

Para o próximo ano letivo, Joana Pereira vai acompanhar um primeiro ciclo, ou seja, alunos pequenos que iniciam uma nova etapa escolar. A docente da EPM já soma perguntas. “Sei que vou ter alunos com necessidades e se eu tiver de começar um ano por videoconferência? Será que eu consigo criar uma relação com eles à distância? Será que consigo motivá-los?”, questiona, antecipando, no caso de um início de aulas à distância, “dificuldades ao nível de adaptação” e de “relação interpessoal”.

 

E completa: “Uma criança com dislexia só pode ser diagnosticada no final de um segundo ano de escolaridade, que é quando se tem a certeza que a instrução foi feita por completo. (…) Com interregno, quando é que fica uma instrução completa? Não fica. Em vez de demorar dois anos, demora três ou quatro, e o diagnóstico destas dificuldades acaba sempre por se atrasar”.

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