Un I Wong, advogada da área empresarial: “Macau continua focado no mercado local”

HM
Advogada em Lisboa, com experiência nos ramos empresarial e imobiliário, Un I Wong é natural de Macau e olha com interesse para o projecto da Grande Baía, afirmando que o território ainda tem de trabalhar muito para atingir os objectivos estabelecidos. A jurista defende que Macau olha demasiado para o mercado local e que é preciso ter confiança para chegar a projectos internacionais

 

O projecto da Grande Baía tem ainda muitas áreas para explorar?

É um projecto muito importante e acho fascinante que a China esteja sempre a desenvolver novas iniciativas para crescer, tal como “Uma Faixa, Uma Rota”. A Grande Baía será o motor do crescimento económico na China a curto prazo. Como o projecto começou há pouco tempo, ainda existem muitas áreas a explorar, mas com a colaboração do Governo Central e do sector privado não tenho dúvidas de que muitas pessoas e entidades, incluindo de Macau, vão tirar proveito do projecto.

O seu trabalho, na área empresarial e do imobiliário, acaba por estar muito ligado aos projectos da Grande Baía.

Acompanho alguns processos na China porque desempenho funções como conselheira para a área internacional e exploro as oportunidades que existem. Notamos mais projectos entre fronteiras, ou seja, de empresas chinesas que nos contactam com o intuito de colaborar com Macau e que querem saber como o projecto pode ser lançado. Fomos também solicitados por escritórios de advogados do outro lado da fronteira que procuram a nossa colaboração. Esta é uma área com grandes potencialidades e o Governo está a investir muito no projecto, o que faz com que o sector privado também esteja a investir. Já se contam vários exemplos de sucesso, mas posso falar do caso do BNU, que está em Hengqin. Uma das vantagens mais imediatas que vejo [na Grande Baía] é o facto de a mão-de-obra na China continuar a ser mais barata do que em Macau, além de existirem mais talentos. Conheço empresas que decidiram mudar a sede para Hengqin, tendo contratado locais lá. Mas a gestão e decisão continuam a ser de Macau. A ideia é muito interessante, porque poupam-se custos e conseguem-se mais talentos.

Macau está no caminho da integração na Grande Baía, mas continua a ter um problema de falta de recursos humanos. Pode ser um entrave para o desenvolvimento?

Faltam talentos, mas prefiro focar-me na questão dos profissionais qualificados. Essa é a maior urgência, porque o projecto de Macau ser uma plataforma comercial começou há muitos anos e, apesar do Governo ter investido bastante, o impacto continua a ser muito limitado. Como trabalho em dois sítios [Macau e Portugal], percebo que neste contexto não há muitas pessoas que conheçam as necessidades concretas de duas realidades. Muitas pessoas que trabalham em Macau continuam a focar-se muito no mercado local e não têm visão internacional. Não querem participar nos projectos com impacto internacional, pelo menos neste nicho luso-chinês. Este ano, o Banco de Portugal revelou que a China é o quinto maior investidor em Portugal, sendo que 41 por cento do investimento vem do Luxemburgo e 22 por cento de Hong Kong. E questionei-me: onde está Macau? Será que a plataforma é eficiente?

Que razões aponta para essa lacuna?

Tenho muitos amigos que trabalham em empresas chinesas que investem em Portugal e percebi que não conhecem bem Macau e não têm informações sobre o território. Quando comparam Macau com Hong Kong, como não há grandes vantagens competitivas para o investimento luso-chinês, facilmente escolhem Hong Kong ou outro sítio que também tenha vantagens fiscais e onde o sistema possa ser mais avançado quando comparado com a economia de Macau. O que temos, neste momento, não é suficiente. A única coisa que Macau tem de mais benéfica é a isenção do imposto quando há dividendos, caso uma empresa de Macau faça investimentos nos países lusófonos. Mas isto é algo aprovado todos os anos [no Orçamento], não é uma lei, e por isso não é suficiente.

Pretende-se desenvolver o sector financeiro em Macau e abrir uma bolsa de valores virada para o mercado lusófono. Acha que estão reunidas as condições para isso?

Macau tem de trabalhar muito para conseguir tornar o sector financeiro mais sofisticado e internacional. O objectivo não é apenas ajudar as empresas chinesas, mas também ajudá-las a sair para fora, para que captem investimento. Existe, de facto, um grande potencial que está muito bem definido, que é a captação de investimentos luso-chineses para Macau. É algo possível, mas desafiante, pois já existem dois mercados bolsistas bem estabelecidos em Hong Kong e Shenzhen [dentro da Grande Baía]. A bolsa de valores em Macau, eventualmente, não será muito dinâmica, mas, pelo menos, pode ser algo bem trabalhado e trazer valores para o território. Só apostando na plataforma com os países de língua portuguesa Macau pode ter mais-valia na Grande Baía. O sistema jurídico que temos neste momento não é suficiente para apoiar um projecto tão complexo como a criação de uma bolsa de valores. Falta de legislação, como o Código dos Valores Imobiliários. Há muito trabalho a fazer, e sei que o Governo está a estudar e a planear para isso.

Mas é possível ir além da plataforma?

Penso que o turismo é uma área em que Macau já tem muita experiência e capacidade. Os grandes resorts estabelecidos no território, com grandes eventos, conseguem atingir uma qualidade de serviço muito alta, com grande capacidade em termos de logística e de recursos humanos. É uma área na qual Macau pode partilhar conhecimentos com outras cidades da Grande Baía, com Portugal e até com os restantes países de língua portuguesa. Mas em relação à plataforma, penso que os incentivos devem ser reforçados.

Fiscais?

Vários. Actualmente, além da isenção do imposto de que falei, não há muitos mais incentivos. Macau pode ser uma boa ponte em termos de comércio, não tão forte como Hong Kong, mas beneficiamos do Acordo CEPA. Os benefícios aduaneiros são também importantes para vários produtos. Mas também outros incentivos, como regimes específicos para vários tipos de talentos, algo que acontece em muitas províncias chinesas. Cada cidade, quando quer captar talentos, tem um programa, com a concessão de subsídios ou facilitação de alojamento. Macau pode pensar nisso também, além do regime de residência. É também importante aumentar a eficiência na emissão de vistos e atribuição de residência. Conheço casos de empresas de Macau que não conseguem contratar pessoas fora de Macau, devido às limitações para a emissão de blue cards. Tenho conhecimento, por exemplo, de uma empresa portuguesa que quer abrir uma sucursal em Macau e não consegue contratar pessoas. Desta forma, devem ser implementados programas específicos para estes projectos e proporcionar maior flexibilidade. Se tratamos os projectos dos países de língua portuguesa como se fossem iguais aos outros, quem investe pensa em ir para Hong Kong ou outra cidade, questionando o valor de Macau. É também preciso construir a confiança, pois ainda é fraco o conhecimento dos projectos internacionais.

E em relação ao investimento português na Grande Baía?

O Plano de Resolução e Resiliência (PRR), em vigor em Portugal, pode fomentar o investimento, embora não directamente. Continua a existir em Portugal grande falta de conhecimento sobre a Grande Baía. Trabalho com várias associações e think-tank luso-chineses, e sei que só este ano começaram a acontecer mais seminários focados no projecto. Antes só se abordava o assunto de vez em quando. Mas continuamos ainda na fase inicial para que os portugueses saibam o que é a Grande Baía. Quando a pandemia passar, o Governo chinês também terá interesse em promover a Grande Baía em Portugal. Mas tenho conhecimento de várias empresas portuguesas na área da tecnologia que têm interesse em entrar na China. A maior dificuldade que têm é não saber quem contactar e para que cidade devem ir. Por isso, o nosso papel é servir de intermediários, ajudar nos investimentos e bater em algumas portas. O maior desafio é, sem dúvida, arranjar os parceiros certos para os projectos. Na Grande Baía, como cada cidade tem objectivos definidos, vai ser mais fácil para as empresas portuguesas perceber para onde querem ir. Portugal pode, sem dúvida, ter uma relação mais estreita com a Grande Baía.

Enquanto advogada, acredita que o futuro passará pela interligação dos sistemas jurídicos de Macau e da China?

Um dos maiores desafios da Grande Baía é como tratar as diferenças entre os dois ordenamentos jurídicos. Estudei também Direito da China, além da minha formação em Direito português, e será difícil mitigar as diferenças. A promoção do intercâmbio e formação contínua é muito importante.

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