VozesEnriquecer com a fome João Romão - 24 Jun 2022 DR Ou lucrar com a dor, como denuncia logo no título o relatório sobre desigualdades sociais globais recentemente publicado pela Oxfam, organização não governamental que se tem dedicado ao estudo – e alguma acção – nos campos vários das injustiças sociais que um pouco por todo o mundo assinalam a nossa contemporaneidade. Neste caso, o relatório descreve o impacto avassalador da pandemia de covid-19 sobre as desigualdades no planeta: nestes dois anos apareceram mais bilionários enquanto mais alguns milhões de pessoas foram empurradas para situação de pobreza. Estas são as consequências assimétricas da pandemia numa economia global que acolheu o vírus num contexto generalizado de liberalização de mercados, desregulação de movimentos e transações comerciais e financeiras, evasão fiscal generalizada entre a população mais rica do planeta, limitação crescente da acção dos estados, destruição sistemática dos mecanismos de protecção social e dos estados-providência, desarticulação das formas de organização de trabalhadores, enfim de isolamento sistemático das pessoas perante os mecanismos tenebrosos e implacáveis dos mercados – ou das decisões que em nome do livre funcionamento dos mercados um pequeno número de pessoas vai tomando na condução dos negócios globais contemporâneos. O relatório dá conta da emergência de novos bilionários durante a pandemia e da dimensão do seu poder económico, ao mesmo tempo que descreve processos económicos variados que condenam à fome e à miséria milhões de pessoas no planeta: na realidade, há mecanismos que provocam estes dois fenómenos ao mesmo tempo: a relativa escassez e o decorrente aumento de preços de bens alimentares ou de energia impõem a miséria de muitas famílias espalhadas pelo planeta, enquanto alimentam lucros que engordam ainda mais os accionistas das grandes empresas que controlam estes mercados globais. É desse duplo mecanismo que se faz o significativo aumento das desigualdades em período de pandemia. Os números revelam cruamente a brutalidade desta transferência massiva de riqueza dos mais pobres para os mais ricos que acompanhou a propagação do vírus: no seu conjunto, os bilionários (pessoas com riqueza superior a mil milhões de dólares) nos sectores da alimentação e da energia ganharam mais mil milhões de dólares a cada dois dias, enquanto os preços atingiam os níveis mais altos das últimas décadas; ao mesmo tempo, a doença e os aumentos de preços levaram 263 milhões de pessoas em todo o mundo para situações de pobreza extrema. Os cálculos da Oxfam assinalam aliás uma tenebrosa coincidência: o tempo que demorou a “criar” mais um bilionário durante dois anos de covid (apareceu um novo a cada 30 horas) foi quase o mesmo que demorou a condenar à pobreza extrema um milhão de pessoas (33 horas). Estas desigualdades ainda mais galopantes do que as que tínhamos vivido nas últimas décadas de hegemonia do pensamento e das políticas económicas neo-liberais traduzem-se em diferenças nos rendimentos, no acesso à saúde entre grupos étnicos ou entre países e zonas geográficas, beneficiando poderes políticos e económicos oligárquicos, sobretudo ligados aos sectores das tecnologias digitais, alimentação e, naturalmente, saúde. Mais uma vez, nem concorrência, nem justiça: assiste-se a uma concentração ainda maior de poder e riqueza, com apropriação privada de benefícios e lucros em actividades de que depende a sobrevivência humana (como a saúde e a alimentação) e cujo progresso nas últimas décadas se deveu em larga medida a subsídios públicos à investigação científica e tecnológica (saúde, alimentação e tecnologias digitais). Os exemplos de como a pandemia beneficiou as grandes empresas destes sectores são também inequívocos: no sector farmacêutico, 40 novos bilionários apareceram durante o período em que o covid matou 20 milhões de pessoas no planeta; no sector alimentar foram 62 os novos bilionários que acompanharam a difusão planetária do covid-19, em grande medida graças às subidas de preços alimentares (quase 34 por cento em 2021 e mais 23 por cento previstos para 2022, a maior subida jamais registada desde 1990, quando a ONU começou a contabilizar este indicador a nível global); o sector tecnológico, com a sua preponderância na distribuição global e local de produtos e serviços, também beneficiou largamente da pandemia, com os lucros das cinco maiores empresas (Apple, Microsoft, Tesla, Amazon e Alphabet) a duplicar em 2021 os lucros de 2019. Hoje, estas 5 empresas estão entre as 21 maiores entidades económicas do mundo, considerando o PIB dos países e a capitalização de mercado das empresas. O famigerado proprietário da Tesla viu a sua fortuna aumentar quase 700 por cento desde 2019 e continuaria entre as 0.0001 por cento pessoas mais ricas do mundo mesmo que perdesse 99 por cento da sua riqueza. Na realidade, no período desta pandemia apareceram 573 novos bilionários. Em conjunto, a sua riqueza aumentou 42 por cento. Os rendimentos deste restrito grupo da população mundial representam hoje quase 14% do PIB global, quando eram apenas 4.4 por cento em 2000. As 10 pessoas mais ricas têm a mesma riqueza do que as 40 por cento mais pobres a viver neste despropositado planeta. As condições com que se vive cada dia ou com que parte para enfrentar crises severas como as da pandemia impõem também desigualdades na “resiliência”, como se diz agora, de cada pessoa ou de cada grupo: há grupos mais vulneráveis que outros e com mais condições para recuperar das adversidades. Na realidade, há grupos que sofrem e há grupos que beneficiam destas crises. Este relatório também lembra, por exemplo, que quase 3 milhões e meio de pessoas negras norte-americanas estariam vivas se a sua esperança média de vida fosse igual á das brancas, ou que as mortes por covid de pessoas com origem no Bangladesh a viver no Reino Unido foi 5 vezes superior à das pessoas brancas britânicas. Também se lembra que as pessoas a viver em países menos desenvolvidos (ou nas camadas sociais mais pobres de quem vive em países desenvolvidos) gastam mais do dobro do seu rendimento em comida do que as pessoas mais ricas. Essa desproporção torna-as especialmente vulneráveis às consequências da brutal subida de preços de produtos alimentares a que assistimos. Em pleno século 21, a produção e distribuição de comida é ainda – e talvez cada vez mais – um elemento decisivo das desigualdades sociais e uma causa fundamental da miséria em que vive grande parte da população mundial.