Relatório | Em dois anos, o número de multimilionários cresceu quase 30%

AFP
Termina hoje o Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça. O mediático evento ficou marcado pela publicação de um relatório da Oxfam International, que dá conta do aumento substancial do número de multimilionários desde o início da pandemia. Em 24 meses, as maiores fortunas do mundo cresceram tanto como nos últimos 23 anos, com destaque para os enormes lucros da indústria farmacêutica

 

Desde o início da pandemia, em 2020, que os mais ricos do mundo não se reuniam presencialmente em Davos, na Suíça, onde habitualmente acontece o Fórum Económico Mundial. O evento que chega hoje ao fim ficou marcado pela divulgação, na terça-feira, de um relatório da Oxfam International, que dá conta da crescente desigualdade económica e do fosso que se escavou entre ricos e pobres.

A covid-19 transformou-se numa oportunidade de negócio para quem tem mais posses, gerando 62 novos multimilionários no sector alimentar, por exemplo. Intitulado “Lucrando com a dor”, o relatório elaborado pela organização não-governamental (ONG) conclui que as maiores fortunas do mundo cresceram tanto em 24 meses de pandemia como nos últimos 23 anos, sendo que cinco empresas petrolíferas lucraram 2.600 dólares por segundo desde Março de 2020. Em contraste, mais 263 milhões de pessoas correm o risco de descer abaixo do limiar da pobreza este ano, tendo em conta o enorme aumento dos preços. Tal equivale a um milhão de novos pobres a cada 33 horas, num cenário que não é mais do que “um reverso de décadas de progresso”.

Para produzir o relatório, a Oxfam baseou-se na lista anual dos mais ricos da Forbes, publicada a 18 de Março de 2020, que contemplava a existência de 2.095 multimilionários, número que subiu para 2.668 a 11 de Março deste ano, ou seja, um aumento de 27,35 por cento de fortunas.

A Oxfam também analisou e comparou dados do Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Crédit Suisse e Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).

A palavra de ordem da Oxfam é, por isso, o aumento da carga fiscal dos mais ricos, para canalizar capital para medidas económicas que reduzam a desigualdade. “A riqueza dos bilionários expandiu-se durante a pandemia da covid-19, uma vez que as empresas do sector alimentar, farmacêutico, energia e tecnologia aumentaram os lucros.

Entretanto, milhões de pessoas em todo o mundo enfrentam uma crise com o aumento do custo de vida e os efeitos contínuos da pandemia; o custo de bens essenciais, incluindo alimentação e energia, sofreram aumentos consideráveis.”

A Oxfam diz mesmo que a desigualdade, “que já era extrema antes da covid-19, atingiu novos níveis”. Desta forma, “há uma necessidade urgente de os Governos implementarem políticas progressivas de cobrança de impostos que podem ser usadas para reduzir desigualdades”.

“Em todo o mundo, de Nova Iorque a Nova Deli, as pessoas comuns estão a sofrer. Os preços estão a aumentar – da farinha, do óleo para cozinhar, do combustível, da electricidade. As pessoas em todo o mundo estão a ser forçadas a cortar nos gastos e a enfrentar o frio nas suas casas. São forçadas a abdicar de cuidados médicos para terem comida na mesa. Os pais são forçados a escolher que filho pode estudar”, lê-se no relatório.

A divulgação do documento enquanto decorre o Fórum Económico Mundial, em Davos, não é por acaso. A linguagem usada pela ONG é, acima de tudo, de ironia perante as crescentes desigualdades. “Os bilionários vão reunir-se em Davos, presencialmente pela primeira vez em dois anos, e têm muito para celebrar. Durante a pandemia da covid-19, a acumulação de riqueza atingiu níveis sem precedentes. A pandemia – que trouxe tristeza e perturbação à maior parte da humanidade – tem sido um dos melhores períodos da história para a classe dos bilionários.”

O aumento do custo de vida tornou-se, segundo a Oxfam, uma das grandes consequências da pandemia. “Temos visto governos e a comunidade global a falhar na prevenção do maior aumento da pobreza dos últimos 20 anos. Esta falha pode ser descrita como catastrófica: mais de 20 milhões de pessoas morreram devido à pandemia e, em todo o mundo, cada dimensão da desigualdade tem crescido de forma excepcional.”

Sectores mais lucrativos

Não surpreendem, portanto, os dados revelados pela ONG. Precisamente os sectores mais essenciais à população foram os que registaram maiores crescimentos de fortunas. Prova disso é o facto de as maiores empresas e fortunas feitas no sector da alimentação e energia terem apurado cerca de mil milhões de dólares a cada dois dias, para totais superiores a 453 mil milhões de dólares.

A fortuna dos dez mais ricos do mundo é hoje superior à riqueza somada de 3.100 milhões de pessoas, que perfazem 40 por cento da população mundial. Os 20 mais ricos acumulam mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) somados dos 46 países da África Subsariana, precisamente uma das regiões mundiais que mais sofre de pobreza extrema.

A culpa, para os responsáveis da Oxfam, é de “décadas de políticas neoliberais que levaram serviços públicos para o sector privado”, encorajando “a concentração massiva de poder corporativo e não pagamento de impostos a uma larga escala”.

“Estas políticas levaram activamente à erosão dos direitos dos trabalhadores e redução de impostos das grandes empresas e dos mais ricos. Também abriram campo ao aumento da exploração além do que o planeta pode suportar”, pode ler-se.

No que à desigualdade diz respeito, destaque ainda para a questão do género, uma vez que as mulheres foram as que mais sofreram nestes últimos anos. “Durante a pandemia, as mulheres foram desproporcionalmente afastadas de empregos, especialmente durante períodos de confinamento e distanciamento social, que afectaram a força laboral feminina nos sectores dos serviços, como é o caso do turismo e hotelaria.”

A Oxfam dá conta que às mulheres cabe hoje o trabalho de lutarem para poderem alimentar as famílias. “Em 2020, as mulheres foram, em média, retiradas da força de trabalho mais 1.4 vezes em relação aos homens, fazendo três vezes mais horas de trabalho não pago na área dos cuidados.” Além disso, no ano passado, havia menos 13 milhões de mulheres empregadas comparando com 2019, enquanto que o emprego dos homens atingiu os níveis pré-pandemia, aponta o documento.

As grandes “dinastias”

Quais foram, então, as principais empresas a lucrar com a pandemia? A Oxfam fala das “grandes dinastias”, sobretudo no sector alimentar, como é o caso da norte-americana Cargill, que controla mais de 70 por cento do mercado mundial de produtos agrícolas e que é detida, em 87 por cento, pela 11ª família mais rica do mundo. Como exemplo, em 2021 a empresa obteve receitas na ordem dos cinco biliões de dólares, um resultado que fez história no seio da empresa. “Recentemente, quatro membros da família Cargill juntaram-se à lista dos 500 mais ricos do mundo”, aponta o relatório.

Há também referência à cadeia de supermercados Walmart, também norte-americana, tida como um dos grandes empregadores privados do país. A família Walton detém cerca de metade das acções da Walmart e uma riqueza avaliada em 238 mil milhões de dólares.

Por sua vez, o sector farmacêutico não fica de fora, tendo surgido, desde Março de 2020, 40 novos multimilionários nesta área. O boom foi sustendo por “monopólios de vacinas, tratamentos, testes e equipamento de protecção pessoal”, sendo que a maior parte destas fortunas pessoais vieram de financiamentos públicos no contexto da covid-19.

“Os gigantes farmacêuticos estão a fazer mil dólares a cada segundo em lucros só com as vacinas e estão a cobrar aos governos 24 vezes mais do que o custo normal da produção de uma vacina”, descreve a Oxfam. Por sua vez, “as empresas do sector farmacêutico têm fugido às responsabilidades quanto ao pagamento de impostos, recorrendo a paraísos fiscais”.

No relatório constam nomes de empresas como a Moderna, que teve margens de lucro de 70 por cento com a vacina contra a covid-19, e a Pfizer, que no ano passado pagou dividendos aos accionistas na ordem dos 8.7 mil milhões de dólares.

A Oxfam acusa esta farmacêutica de “usar tácticas sujas para aumentar os lucros, incluindo desinformação sobre a Universidade de Oxford e a vacina da AstraZeneca, a insistência em cláusulas contratuais que podem ser usadas para silenciar críticas ou o controlo de datas de entrega”.

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