Literatura | A escrita de José Saramago vista pelos tradutores orientais 

A 16 de Novembro deste ano celebram-se os 100 anos do nascimento de José Saramago, o único Prémio Nobel da Literatura português. A Universidade de Macau assinala hoje a data com um webinar que junta os testemunhos de Maho Kinoshita e Wang Yuan, tradutores das palavras de Saramago para japonês e mandarim. Ao HM, recordam o momento em que se cruzaram com a escrita de Saramago e os desafios de traduzir a sua obra

 

A primeira vez que Maho Kinoshita leu “Ensaio sobre a Cegueira”, livro de José Saramago publicado em 1996, ficou “impressionada e encantada”. Maho é a tradutora para japonês do único Prémio Nobel da Literatura português, nomeadamente do seu livro “A Viagem do Elefante”.

Quando os seus olhos se debruçaram sobre o livro “Ensaio sobre a Cegueira”, que já deu origem a um filme, Maho sentiu “uma forte vontade de o traduzir”, confessou ao HM. “Nessa altura nenhum livro dele tinha sido traduzido para japonês. Ainda era jovem, nunca tinha feito nenhuma tradução, não tinha essa capacidade. Mas fiquei feliz quando vi publicada a versão japonesa em 2001”, contou ao HM.

Maho Kinoshita é uma das oradoras do evento online que acontece hoje e que se intitula “Homenagem a José Saramago por ocasião do centenário do seu nascimento”. A palestra, que conta também com a participação de Wang Yuan, tradutor de Saramago para mandarim, é promovida pela Universidade de Macau, contando com os docentes Zhang Jianbo e Mário Pinharanda Nunes.

Com “A Viagem do Elefante”, livro escrito quando Saramago já estava com estado de saúde frágil, Maho diz ter sentido muitas dificuldades na pele. “Uma vez que a língua japonesa tem uma gramática totalmente diferente da portuguesa, tive de recompor praticamente todas as frases longas. Tive também muita dificuldade em traduzir as inúmeras insinuações sobre a Bíblia ou a história e cultura da Europa, às quais os leitores japoneses não são familiares. Fiz várias notas de tradução para dar uma melhor explicação”, apontou.

Além disso, obras como “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim”, onde o cristianismo é peça central, são mais difíceis de compreender por parte dos japoneses, confessou a tradutora.

Obras “universais”

Maho Kinoshita garante que, até há dois anos, José Saramago não era verdadeiramente conhecido e amado no Japão. Mas o livro “Ensaio sobre a Cegueira”, esgotado durante anos, foi reeditado nesse ano, o que coincidiu com a pandemia, um período em que muitos ficaram em casa. E aí a versão japonesa tornou-se num best-seller.

“Finalmente os leitores japoneses descobriram Saramago. O facto de terem sido traduzidos dois livros dele para japonês em 2021, ‘As Intermitências da Morte’ e ‘A Viagem do Elefante’, mostra o crescente interesse dos japoneses.”

Para falar da obra do Prémio Nobel e do que ela significa para si, Maho vai buscar uma frase de Ursula Le Guin, uma escritora americana que um dia escreveu que Saramago estava “além de nós”, e que o seu trabalho “pertence ao futuro”. “Eu diria o mesmo. Os livros nunca vão estar fora do tempo, são muito universais”, frisou a tradutora.

Além de Saramago, Maho já traduziu outras obras de escritores portugueses e brasileiros, como é o caso de “A Espiã”, de Paulo Coelho, ou “Galveias”, de José Luís Peixoto. Sobre este último livro, foi a própria Maho que sugeriu a sua tradução à editora.

Esta foi uma obra “querida” para si, por ser a primeira sugestão sua aceite. “José Luís Peixoto usa expressões muito lindas, mas ao mesmo tempo muito peculiares. Tive muitas dificuldades na tradução. Fiquei muito feliz quando o livro recebeu o prémio de melhor tradução no Japão em 2019”, acrescentou.

A mestria e o fantástico

Wang Yuan também teve o primeiro contacto com José Saramago através do livro “Ensaio sobre a Cegueira” em 2007, quando ainda era aluno do primeiro ano na Universidade de Pequim. O ainda caloiro também leu “Memorial do Convento”.

“Não esperava encontrar o estilo de narrativa corrida de Saramago, mas o que mais me impressionou foi a mestria dele, de como entrelaça o real com o fantástico. Os elementos maravilhosos e sobrenaturais nos seus romances pareciam tão naturais que me davam reacções emotivas. É essa a sua capacidade mágica de captar os leitores que mais me faz falta”, adiantou ao HM.

Wang Yuan é o autor das traduções para chinês de “Todos os Nomes” e “A Viagem do Elefante”. “O tema da viagem é algo que me encanta sempre, e senti uma grande alegria por poder traduzir este livro”, apontou.

Como se traduz um autor cuja leitura é complexa em português para mandarim? “O maior desafio é manter o estilo singular da escrita de Saramago sem tornar a leitura intolerável para os leitores chineses, que não conhecem bem o seu estilo nem o pano de fundo histórico e social [da história].”

“Como os livros de Saramago se baseiam muitas vezes da situação histórica, geográfica e cultural de Portugal, é essencial fazer muitas notas de rodapé. Acredito que, quando se lê uma boa tradução, não se deve sentir como se fosse escrita na língua-mãe do leitor. Isto porque uma certa dose de estranheza com a língua e o imaginário é o que distingue uma tradução. No entanto, atingir esse efeito requer muito esforço”, frisou Wang Yuan.

O tradutor acredita que os leitores chineses “se identificam mais com as obras tardias do autor, que correspondem “à sua fase de [apresentar] preocupações mais universais”.

Numa altura em que se celebra o centenário sobre a morte de Saramago, Wang Yuan diz admirar o facto de o Prémio Nobel da Literatura português “nunca se ter deixado de preocupar com a humanidade”.

“Ele manteve-se fiel ao que acreditava, tanto na vida como na escrita. Numa entrevista dada à ‘The Paris Review’, Saramago disse que o mais precisávamos era de dizer ‘Não’. Esta atitude inconformista garante a actualidade das suas obras”, concluiu.

Teatro, imagens e letras

A fim de celebrar os 100 anos do nascimento de José Saramago, a fundação com o seu nome promove nos próximos meses um extenso programa que mistura letras, teatro e outros eventos culturais que acontecem em várias cidades de Portugal, mas não só. Destaque, por exemplo, para a exposição “Escritores da Jangada de Pedra”, que decorre em Lanzarote, Espanha, e que termina no próximo dia 11.

Esta é uma exposição de fotografia de Daniel Mordiznski, com imagens de José Saramago e outros autores e autoras ibéricos. Também no próximo dia 11 decorre o evento “Conferências do Nobel”, na Câmara Municipal de Lisboa, com a presença do escritor Alberto Manguel, também director do Centro de Estudos de História da Leitura.

Este será um ciclo de conferências que visam “debater temas de grande relevância sintonizados com a obra de Saramago”.  Nos palcos, destaque para a estreia, a 10 de Junho, da peça “Ensaio sobre a Cegueira”, com encenação de Nuno Cardoso, no Teatro Nacional de São João, no Porto.

A adaptação do romance com o mesmo nome de José Saramago é uma co-produção com a companhia Teatre Nacional de Catalunya, ficando em cartaz até ao dia 19 de Junho. As actividades de celebração do centenário do nascimento de Saramago decorrem até Novembro deste ano.

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