“Debate sobre libertação das mulheres foi importante no PCC”

Em traços gerais, como tem evoluído a posição da mulher chinesa, sobretudo entre a queda do império e o período da República? Podemos falar de uma libertação da mulher dos padrões sociais normais e um início de debate sobre os seus direitos?

A China Imperial regia-se pelos princípios patrilinear e da hierarquia social, sendo que ambos constituíam uma herança do pensamento confucionista. Neste contexto, a mulher encontrava-se subordinada ao homem e dever-se-ia submeter à autoridade masculina (primeiro, do pai, depois, do marido e dos filhos), sendo a linhagem da família assegurada pelos membros masculinos. Tendo em conta que as funções da mulher se circunscreviam ao círculo familiar, as virtudes femininas (socialmente consideradas) remetiam para a obediência, a docilidade ou a castidade. Não é, assim, por acaso que, no final do século XIX, quando assistimos, ainda no final da Dinastia Qing, ao nascimento de um movimento feminista chinês, a herança confucionista será um dos alvos de contestação.

Que papel teve este movimento?

Ainda que brotando das entranhas das classes mais abastadas e tenha nascido sob o impulso de mulheres que tiveram a possibilidade de estudar no exterior (nomeadamente, no Japão, EUA e Europa), o movimento feminista chinês vai lançar o debate, no seio da tradicional sociedade chinesa, sobre a condição e a posição social das mulheres.

Quais as principais reivindicações à época?

Reivindica-se, então, o direito a uma educação para as mulheres, direitos iguais, perante a lei, e a abolição dos pés enfaixados (um acto que remontava à dinastia Song e que pretendia demonstrar, no seio de uma determinada comunidade, a riqueza de uma família). Todas estas reivindicações têm a particularidade de unir o feminismo com o patriotismo, já que se considerava que o fato de as mulheres terem acesso à Educação permitiria que os seus filhos pudessem ter uma melhor formação, o que, afirmavam as feministas chinesas, conduziria a uma melhoria qualitativa do nível de conhecimento e de formação do povo chinês. Ainda que, do ponto de vista legal, a educação feminina tenha o seu início formal em 1907, será necessário aguardar pela instauração da República, em 1912, para que se verifique, de facto, uma evolução qualitativa na condição da mulher no seio da sociedade chinesa.
O debate iniciado no final do século XIX acaba por surtir um efeito legislativo na China republicana, pelo que, a partir de então, o enfaixamento dos pés é proibido e as escolas passam a poder ser mistas. Não obstante, a Constituição elaborada pela Assembleia Legislativa de Nanjing, e tornada pública a 11 de março de 1912, não prevê, por exemplo, o sufrágio feminino ou a elegibilidade das mulheres, o que constituiu um motivo de desapontamento para as sufragistas chinesas. Apesar disso, a mulher, no plano social e jurídico, vai assumindo um novo papel, pelo que podemos falar de uma evolução, a qual, no contexto chinês, passa por uma libertação da mulher das amarras patriarcais, herdadas, em parte, do confucionismo. Em 1915, a emancipação das mulheres vai encontrar-se no centro de vários debates, discutindo-se temas como a denúncia da moral confucionista, o casamento, o concubinato ou o encorajamento do suicídio feminino, em nome da virtude e da lealdade. A discussão aprofunda-se aquando do movimento 4 de maio de 1919, momento este que podemos considerar como o ponto alto na história do feminismo na China.

Houve mudanças a nível jurídico, por exemplo?

Aprofunda-se, então, uma reflexão sobre o papel das mulheres na sociedade, a necessidade da sua libertação, a castidade e virgindade (duas virtudes consideradas fundamentais na China tradicional) ou a desigualdade sexual. O debate sobre a condição feminina vai, depois, a partir de 1921, ser levado para o interior do Partido Comunista Chinês. Aliás, muitos dos autores que colaboram na imprensa vanguardista pós-movimento 4 de maio e que defendem a libertação da mulher na sociedade chinesa serão ativos militantes comunistas. Com efeito, estes futuros membros do Partido Comunista Chinês (como Chen Duxiu, Chen Wangdao ou Qu Qiubai) concluem que é necessário operar-se uma mudança sociopolítica para que a mulher, na China, possa alcançar uma nova posição social. Em suma, o debate no que diz respeito à condição feminina foi-se aprofundando, ao longo da primeira metade do século XX, abrindo, deste modo, o caminho para uma efetiva igualdade sociopolítica e jurídica.

Na China de Mao, e sobretudo no período da Revolução Cultural, os direitos das mulheres eram abordados ou simplesmente ignorados pelo poder?

Como referi, o debate sobre a libertação das mulheres passa a constituir um elemento importante no seio do Partido Comunista Chinês, e isto logo após a sua fundação, em 1921. Quando, no final da década de 1930, o PCC domina algumas zonas rurais (fundando, então, a República Soviética da China), os comunistas vão, desde logo, integrar as mulheres nas atividades políticas e económicas. O PCC enceta, assim, um movimento sociopolítico vanguardista, libertando a mulher da esfera patriarcal e familiar e trazendo-a para a esfera pública. Data, aliás, de 1931, o Regulamento sobre o Casamento, publicado na então República Soviética da China, o qual podemos considerar como o primeiro texto legal que codifica a prática do casamento entre indivíduos livres e iguais. Na sequência deste regulamento, o governo soviético chinês publicou, três anos depois, a Lei do Casamento, a qual estipula, entre outras prerrogativas, uma idade mínima no casamento (18 anos, para as mulheres, e 20 anos, para os homens), a obrigatoriedade de declarar o casamento às autoridades, a proibição da poligamia e do concubinato ou o divórcio por mútuo consentimento.
Depois da revolução chinesa, em 1949, a recém-nascida República Popular aprova, desde logo, matéria legislativa que pretende colmatar as diferenças, perante a lei, de homens e mulheres. Esta legislação herdou, aliás, muito daquilo que havia sido estipulado nos regulamentos aprovados durante a década de 1930. A lei do voto garante o direito de voto das mulheres e estipula-se, por exemplo, que as mulheres recebam o mesmo salário que os homens, pelo mesmo trabalho, assim como direitos de propriedade e de acesso ao trabalho iguais. Sendo consideradas, tal como os homens, como parte da força de trabalho, as mulheres são chamadas a participar na construção da nova sociedade socialista, buscando-se atingir uma igualdade, de facto, por meio da transformação da sociedade. Aliás, já no Livro Vermelho, Mao Tsé-Tung assinalava que, ao longo da história chinesa, o homem havia estado sujeito à dominação de três sistemas de autoridade: a autoridade política, a autoridade familiar e a autoridade religiosa. A mulher, por seu lado, alertava Mao, encontrava-se, contudo, submetida a uma quarta autoridade – a autoridade masculina -, pelo que Mao considerava que o exercício destas quatro autoridades constituía a própria essência ideológica e moral do sistema feudal-patriarcal que havia que derrubar. Os direitos das mulheres não apenas não foram ignorados, na China Popular, como após 1949 se iniciou um processo social, político e jurídico com o objetivo de terminar com as desigualdades existentes entre homens e mulheres, nas diferentes esferas da sociedade.
Aliás, a própria Julia Kristeva, na sua obra Des chinoises, ainda que criticando o fato de as ativistas feministas, depois de 1949, terem optado pela luta de classes, em detrimento da luta pelos direitos das mulheres, assinala que foi sob a influência de Mao que as mulheres obtiveram mais direitos, no plano jurídico, assim como cargos e tarefas de responsabilidade. Kristeva assinala, desta forma, a relevância do papel da mulher chinesa e a sua ligação com as transformações ocorridas na China, ao longo do século XX. Com efeito, a Revolução de 1949 permitiu uma rutura com a China feudal, possibilitando um salto qualitativo na igualdade entre homens e mulheres, quer no plano político, quer no plano familiar, quer, ainda, no plano religioso, num movimento sociopolítico que se tem vindo a desenvolver e aprofundar até à atualidade.

A abertura do país, desde Deng Xiaoping, trouxe um maior alerta sobre os direitos das mulheres no geral, mas sobretudo em matéria de direitos laborais?

Os avanços nos direitos das mulheres, levadas a cabo pelo Partido Comunista Chinês, remontam, como assinalei, à década de 1930. Estes avanços aprofundam-se depois de 1949, momento a partir do qual as mulheres alcançam um novo papel sociopolítico e jurídico, nomeadamente com o reconhecimento do seu papel na atividade produtiva e na construção de uma China socialista. Ainda assim, as transformações mais marcantes, no plano legislativo, datam da década de 1980, sobretudo depois da aprovação da Constituição de 1982, durante o mandato de Deng Xiaoping. A Lei Fundamental da República Popular da China vai enquadrar medidas em defesa dos direitos das mulheres, consagrando a igualdade entre mulheres e homens, em todas as esferas da vida, os mesmos direitos no acesso a um trabalho, a promoção do acesso das mulheres a cargos de responsabilidade, assim como disposições sobre a proteção das mulheres no trabalho. No quadro legislativo, são, ainda, de destacar, no plano jurídico, os Regulamentos de Saúde Pública (1986), os Regulamentos de Proteção do Trabalho (1988) e a Lei para a proteção e defesa dos direitos e interesses das mulheres (1992). Desta forma, podemos dizer que a pretensão de alcançar, no plano jurídico, uma igualdade plena, foi, finalmente, alcançada, com a aprovação da Constituição que, em 1992, veio substituir a Constituição de 1978, e pelos diplomas legais aprovados depois desta data.

O “mee too” parece ser pouco discutido no país actualmente. Pensa que deveria haver espaço para uma mudança de mentalidades neste sentido?

Creio que a história da China nos demonstra que a evolução sociopolítica e jurídica das mulheres não se desliga da luta pela emancipação e libertação do Homem. A capacidade que o ser humano possui de reivindicar e de ousar denunciar constitui uma condição prévia para que, no plano das consciências e nas diferentes esferas da vida em sociedade, se efetue um salto qualitativo com vista a uma vida em sociedade que não seja marcada pela barbárie, pela violência e pela exploração. Ousar lutar e ousar reivindicar é um ato necessário tanto para a emancipação social, jurídica e política da mulher, quanto para a emancipação do ser humano. Na actualidade, perduram formas de opressão e de violência que atingem diferentes grupos e estratos da sociedade e que, naturalmente, se abatem com maior ferocidade sobre aqueles que se encontram mais desprotegidos, seja por razões económicas ou sociais, seja por pertencerem a um género que, ao longo da história das diferentes organizações societais, têm sido alvo de um domínio e repressão particulares (como é o caso das mulheres). Creio, por isso, ser fundamental, não apenas a libertação e emancipação, de facto, das mulheres (para além do plano jurídico), como, igualmente, a libertação e emancipação do ser humano de todas as formas de opressão e violência. Quero com isto dizer que, ainda que a opressão patriarcal tenha condenado a mulher (não apenas na China) a um papel subalterno e de subserviência, persistem formas de sujeição e de tirania, independentes do género, cujo término é fundamental para que, no plano sociopolítico, a mulher e o homem possam libertar-se da crueldade, ignorância e formas de domínio que, infelizmente, persistem (e, em alguns casos, se acentuam). Não há mudança de mentalidades sem luta, sem consciência, sem debate. Por isso, há pouco, referia que, no caso da mulher, há que ir além de uma igualdade no plano jurídico. A igualdade jurídica permite aceder a novos espaços e territórios que, até então, lhe estavam vedados. No entanto, acredito que apenas com resistência, palavra e luta se construirão, de facto, espaços de igualdade, de respeito mútuo e de comunhão de esforços na construção de uma sociedade que não imponha guerras, opressão e violência à grande maioria desprovida das ferramentas que permitem o acesso a espaços decisórios e de poder.

Houve uma evolução da representação da mulher em áreas como a arte e literatura?

O exercício de leitura e de interpretação, assim como de escrita ou de concretização de uma obra de arte, implica que seja possível aceder a espaços formativos e educativos. A arte existe no seio de uma determinada cultura, sendo dela produto e, concomitantemente, reflexo.
Na China, as primeiras escolas femininas remontam ao final do século XIX, sendo que o governo imperial apenas legaliza a educação feminina em 1907. Neste sentido, durante séculos, o acesso à leitura e escrita era apanágio, sobretudo, de homens. Destes, apenas aqueles que pertenciam às classes mais abastadas àquelas tinham acesso. Por outro lado, até ao século XX e ao surgimento das primeiras escolas, as mulheres letradas pertenciam, também elas, às classes mais favorecidas da sociedade. Estávamos, assim, perante uma situação em que a grande maioria da população era iletrada e em que o acesso à cultura – e, portanto, às manifestações artísticas -, apenas era permitido a uma minoria. No quadro desta minoria, os homens tinham um acesso privilegiado. Ora, sendo a literatura e outras manifestações artísticas parte da vida de uma determinada comunidade humana, aquelas constituem manifestações não apenas estéticas, mas também sociais, pelo que a representação que, nas diferentes artes, podemos encontrar da mulher e do homem, refletem não apenas o gosto e valores estéticos que se manifestam num determinado período socio-histórico, como, também, a organização socioeconómica na qual aqueles valores se impõem. Naturalmente que, neste sentido, a representação que é feita da mulher evolui concomitantemente com a evolução da organização política e económica de uma determinada sociedade. Costumo dizer que a arte e a literatura têm vida, respiram, andam, saltam mundos e caminhos. Assim, a interpretação de uma personagem feminina, numa obra de finais do século XIX, não pode ser desligada nem do ambiente socioeconómico em que a mulher real vive, nem do seu criador, o qual respira, pensa e sente, num determinado quadro sociocultural. Hoje, fruto da evolução sociopolítica e jurídica da mulher, temos uma proliferação de autores mulheres, na China, como em todos os restantes cantos do mundo.
Este facto traz, naturalmente, novas representações e cosmovisões da mulher para o plano artístico, enriquecendo a literatura e a arte com novas propostas de leitura. Como escrevia o António Gedeão, o mundo pula e avança. Acrescento eu que também pulam e avançam formas de luta e de resistência que permitiram que, hoje, na China, e fora dela, as mulheres alcançassem espaços de poder e de palavra que lhe haviam sido, tradicional e secularmente, negados.

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Miguel Paulitos
Miguel Paulitos
9 Mar 2022 01:44

Bravo !