Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasVamos ao Nimas II António Cabrita - 14 Jan 2022 “Don’t look up!”: um produto genuíno e bem calibrado da indústria de que emana, sem merecer nem as paixões que move nem o descaso de tantos. Aliás, talvez mais interessante de analisar seja o debate que provocou e ter-se descoberto que, afinal, sob as pedras da calçada não há a praia mas uma legião de críticos de cinema. A fita é uma paródia aos filmes-catástrofe a que juntou uma oportuna sátira política à mentalidade e à pauta de comportamento dos neo-liberais. A narrativa expõe logo as suas premissas, por um lado o seu espartilho e por outro a garantia de que o esquema se cumprirá. Daí a estereotipia das personagens, só existem para ilustrar o tema e não para evoluírem para algum tipo de autonomia orgânica e existencial – simetricamente, as suas diferenças complementam-se e justificam o estado das coisas. Não podemos deslindar no filme os traços do seu género – a paródia – e a meio do jogo esperarmos que se mudem as regras. Também os géneros são condutivistas. Esperar que este filme nos reservasse surpresas é como supor que um lavagante escorregará à vontade nos intestinos de Bolsonaro, se afinal um simples camarão o obstrui. Há regras aristotélicas que não se compadecem com as mudanças. A alguma eficácia satírica de “Don’t look up!” depende de tudo ser previsível na sua estrutura, é o que torna aqueles políticos ou aqueles pivots televisivos abjectos – i. é, incapazes de grandeza, de reconhecer que há coisas sérias e fora da dimensão do espectáculo ou de serem susceptíveis à mudança (, já que ser dignos está-lhes vedado: o show off devorou-os, como ao cientista a pivot televisiva). O molde que os conformou é rijo como as carapaças dos caranguejos, que anda para o lado quando quer avançar. Aquilo que, ainda assim, “Don’t look up!” nos apresenta em modo crítico é-nos servido em “Homem-Aranha – sem volta a casa”, de modo jubilatório. Os filmes da Marvel estão para o cinema como os placebos para os remédios. Uma semana depois de ter abandonado a fita aos 40 min, ainda continuo atordoado. Por que há-de ser o prazer néscio? Escrevi por descarga, no Facebook: «Se visse esta fita com o meu neto mergulharia na culpa infinita de o ter estupidificado, se o visse na cama de hospital desejaria morrer por não haver redenção para este grau -zero em matéria de gosto… Que Deus (que é ateu, como eu) perdoe aos milhões de carrapatos que tornaram este “filme” um mega-sucesso de bilheteira. O que só indica que a frivolidade e a menstruação das múmias congelaram os cérebros. Trump vai voltar, melhor sintoma do que este não há!» – mas a coisa é mais triste. Bom exemplo de cinema, para traçarmos um contraste, é “O Poder do Cão”, de Jane Campion (o melhor da realizadora em muitos anos). Este western, para além de nos arrebatar pelo modo como nunca se esquece do espaço como dimensão cénica (em vários planos as montanhas ganham a maciez de uma pele de animal), sufoca-nos com a teia psicológica que o carismático vaqueiro arma em redor daquele adolescente irresoluto e de dúbia sexualidade. Como as aparências nos enganam. Durante uma hora vivemos a angústia do cordeiro que sente a águia a pairar. O espectador é penetrado pela atracção e o conflito entre as personagens, bem enfatizado no choque entre a escala das paisagens e a intimidade do drama. Não há um plano neutro, uma cena neutra, tudo é indício numa escalada natural da emoção e, neste filme, a inteligência finta-nos, surpreende-nos, sidera. Nos filmes da Marvel já é indiferente a posição da câmara (intenta-se o olhar ubíquo de Deus, no afã de tudo mostrar e de tomar o espectador por idiota) e os seus enredos não oferecem um verdadeiro conflito, um prévio determinismo associado aos poderes dos super-heróis reduz o Mal a papel-bolha. Não há limites físicos para os heróis, a dor, neles, é uma mera questão turística – os obstáculos atrasam apenas a rendição do Destino à eficácia dos seus poderes. Ora, justamente, como na tragédia grega, o cinema vive do conflito entre a irrevogabilidade do Fado e a vontade das personagens, sendo aquele um obstáculo a que nem os deuses escapam. Hollywood inventou os finais felizes, mas não raro as mais magníficas personagens derrapavam num sentimento da perda, só lhes sobrando a dignidade, uma redenção nada isenta de sacrifício. Há pouco assisti com deleite e susto a um vídeo onde o Tarantino enumerava os 20 melhores filmes deste século, na sua perspectiva. Vi depois o filme japonês que ele elege inequivocamente como a obra-prima do século, “Battle Royale”, e conclui, o Tarantino percebeu que na América ganha mais se der sinais de não ter crescido e exalta filmes muito imbecis para que se realce que ele é melhor cineasta que os seus modelos. É uma boa estratégia. Já nem se procura que a técnica sirva adequadamente o ethos da história e a tessitura emocional das personagens. O marketing e a pirotecnia tecnológica abafam tudo. São grandes espectáculos mas são derivados do cinema, tal como o néon tem a forma da salsicha sem lhe atingir o sabor. Se senti um desequilíbrio em quase todos os últimos filmes de Scorsese, tão virtuosos tecnicamente como vazios na espessura e no interesse humano dos personagens (e estou a falar de um dos melhores), como encarar esta vaga de fitas da Marvel? É um equívoco procurar aqui uma correspondência da “arte pela arte” que, noutras disciplinas artísticas, desencadeou algum amaneiramento estilístico. O Tarantino, com a eleição de “Battle Royale” pôs as cartas na mesa. As indústrias culturais já não servem a arte – a memória desta é um escolho e por isso apostam agora todos os seus trunfos na fraude. Entretanto, já pensaram, o mesmo argumentista que deu aos primeiros filmes de Scorsese um carácter especial, uma profunda densidade humana, é o cineasta da “moda” nos últimos anos – Paul Schrader?