És um peixe, parte de um cardume, numa rede

Não sei se é lenda urbana ou se corresponde a alguma realidade: um estudo comportamental realizado no século XX nas grandes cidades, povoadas por milhões de pessoas, chegou à conclusão de que os nossos padrões de existência e convivência tornavam os seres humanos cronicamente infelizes.

Explicava então o documento que para um ser humano o objecto mais interessante é a face de outro ser humano. Por isso, quando alguém nos cruza na rua, automaticamente, de forma inconsciente, a intenção do nosso cérebro é guardar aquela face na memória, tarefa impossível de realizar quando circulamos no seio de uma gigantesca multidão e milhares de faces se nos apresentam ao olhar.

Daí que este tipo de experiência nos cause desconforto e sobrevenha a tendência para baixar os olhos, evitando assim reparar na avalanche de faces que ao nosso lado desfilam. Explicaria ainda o estudo que, em termos gerais, física e psicologicamente, não somos muito diferentes dos nossos antepassados que viveram milhares de anos seguidos em pequenas comunidades e a essa configuração de aglomerado estavam ferreamente acostumados. Ou seja: a evolução biológica e mesmo psicológica do animal humano não foi capaz de acompanhar a evolução das suas criaturas. Ou, ainda por outras palavras: a cultura ultrapassou de longe, de muito longe, as possibilidades biológicas e a humanidade criou as condições perfeitas para a sua própria insatisfação.

Neste processo, a civilização ocidental deu pela emergência de um ser singular, estranho ao mundo antigo, sucedâneo do advento do capitalismo como modo de produção predominante: o indivíduo. Honestamente, não podemos dizer que o indivíduo seja unicamente uma criação económica da burguesia comercial florescente. O conceito como que subjazia a todo o pensamento, canónico ou mundano, desde que o ser humano iniciou a sua peregrinação pelo mundo. Claro que essa assunção foi sempre limitada por constrangimentos sociais que – e bem – compreendiam ser o desejo ilimitado do indivíduo, o seu egoísmo e a centralidade desses desejos, a semente de destruição das sociedades e da sua cultura.

A inovação, a originalidade, a mera distinção, foram sempre olhadas com desconfiança no mundo antigo, quer na Europa quer na China. Os desejos individuais, egoístas, foram em todos os tempos e em todas as civilizações, considerados o mal no mundo, a origem da desgraça e o resultado de uma profunda inadequação à nossa condição existencial. Esta é, na realidade, profundamente gregária. Contudo, o indivíduo sempre esteve lá.

Segundo Peter Sloterdijk (em Stress and Freedom), é em finais do século XVIII que, entretanto, esse mesmo indivíduo ganha foral teórico num texto de Jean-Jacques Rousseau, a saber, no quinto passeio, descrito no livro “Promenades d’un Rêveur Solitaire”. O filósofo suíço gozava na Europa da sua época, depois de obras como o “O Contrato Social”, “Emílio ou da Educação” ou o “Ensaio sobre a Origem das Línguas” de um estatuto de celebridade que não impedia, ainda assim, as autoridades suíças e francesas, inquinadas pela Igreja, de o perseguir por heresia.

Por isso, refugiara-se numa ilha perdida, praticamente deserta, no seio do Lago Biel, na sua Suíça natal. Aí, segundo Sloterdijk, “algo semelhante a um Big Bang ocorreu na moderna poesia da subjectividade”.

Dias depois de se ter instalado na ilha, Rousseau entrou sozinho num pequeno bote, deixando em terra a sua companheira Marie Thèrese, e remou para o meio do lago. Pouco depois, pousou os remos, deixou o barco ao sabor dos movimentos das águas e, sob o sol magro das terras helvéticas, dedicou-se à sua ocupação favorita: o devaneio (rêverie). Sloterdijk chama a atenção que esse “fluir da alma sem se agarrar a nenhum tópico como meditação imaterial” teria um sentido muito mais europeu do que oriental. Rousseau descreve que, por vezes, deixava o barco e o espírito vaguearem sem objectivo durante horas a fio, o que lhe proporcionava um prazer supinamente mais intenso do que o que se costuma designar por “prazeres da vida”. Nas suas palavras:

“Que prazer se retira então de uma tal situação? De nada exterior a si mesmo, de nada senão de si mesmo e da sua própria existência, pois enquanto esse estado dura é-se suficiente a si mesmo, como Deus. O sentimento da existência, despido de qualquer outro afecto, é em si mesmo um sentimento precioso de contentamento e de paz, que por si só seria suficiente para tornar essa existência querida e doce para quem pudesse remover de si todas as impressões sensuais e terrenas que sem cessar nos distraem e perturbam a doçura da existência neste mundo.”

Aqui temos, portanto, a descrição de um indivíduo despido de intenções políticas, sociais, económicas, intelectuais, cognitivas ou mesmo artísticas. Ele é, praticamente, uma consciência pura, para si (indivíduo) e em si (essência/Deus), que puramente goza da mera existência, separada da existência dos outros homens, da cultura e da sociedade, num mero acto de auto-reconhecimento, ainda assim dotado de uma extrema profundidade. Nunca antes o indivíduo se atrevera a fazer de si mesmo uma tal descrição e sobretudo confessar que a pureza que advinha da construção desse instante lhe proporcionava um inaudito prazer.

Rousseau apresenta-nos um indivíduo sujeito de si mesmo (não do rei ou da própria linguagem), independente, totalmente livre, pelo menos enquanto mergulhado nos seus devaneios próprios e distante de qualquer contacto social. Este homem rousseauniano prescinde do resto da humanidade e adquire nesse distanciamento um prazer descrito como o mais sublime de todos os prazeres, embora consista unicamente na constatação e fruição da sua existência enquanto consciência individual.

Como acrescenta Sloterdijk, não estamos perante o tédio heideggeriano ou a consciência infeliz de cristãos, budistas, estóicos, freudianos e outros que têm moldado a nossa relação ao mundo. Este indivíduo, meramente por ser dotado de consciência, de um pleno sentimento de si, é soberano e feliz.

*

Ora este homem, este sentimento de absoluta solidão perante o cosmos, este sentimento de total liberdade, praticamente desapareceu. Desde os anos 90 do século XX que constantemente, em permanência, nos sujeitamos voluntariamente a outro tipo de experiência eminentemente social: vivemos em e para a rede. A consequência do advento da internet é, singularmente, uma vivência de grupo, ainda que virtual, dispensada que está a proximidade física para a maior parte das actividades humanas. Concomitantemente, a presença constante do telemóvel obriga-nos a estar a todo o momento à disposição dos outros. Estes exigem a nossa presença e a sua permanente existência constantemente nos faz viver para e com eles, considerando as suas opiniões os seus “gostos” e “desgostos”, um novo tribalismo cujas fronteiras ainda que mal definidas não deixam ainda assim de nos limitar as escolhas, os pensamentos, os atrevimentos.

Navegamos por diferentes redes sociais consoante a qualidade dos nossos desejos, mas estes encontram-se a todo o momento em xeque face às reacções que vamos obtendo e acabam por ser moldados por esse novo grande Outro que é o fantasma incognoscível que preside, finalmente, às redes sociais: os algoritmos que determinam o seu funcionamento. Nelas se espoja a nossa intimidade, as nossas opções políticas; nelas encontramos as ideias que confirmam as nossas e as dos nossos; sobretudo, nelas sorvemos a informação que instrói a nossa forma de pensar e fatalmente os temas em que pensamos. Sempre no plural, sempre acompanhados. A nossa servidão – no passado voluntária, na expressão de La Boètie, portanto de algum modo consciente e racional – é já hoje e será no futuro automática, algoritmizada, escapando totalmente ao nosso controlo. Pior: proporciona-nos uma estranha sensação de reversibilidade, de ilusão de escolha individual quando, na realidade, se passa precisamente o seu oposto.

O indivíduo, tal qual o experimentara Rousseau, e que depois atingiu o seu zénite no século XIX, morreu ou vegeta num limbo crepuscular sem capacidade de acção ou pensamento realmente solitário. Por vezes, é quase cómica a tentativa nietzscheniana de o salvar, embora a cada linha do filósofo alemão, a cada construção conceptual mais ou menos radical (como o Ubermensch) se pressinta a consciência do seu irremediável desaparecimento.

Edgar Allan Poe, perante o advento do mundo industrial e das grandes cidades, identificara já, no conto “O homem da multidão”, o horror da vida urbana que remete o ser humano, ao mesmo tempo, para um paradoxal sentimento de anonimidade, solidão e falta de outro propósito que não seja o estar acompanhado, embora tal não incluísse o contacto efectivo com outros seres humanos. O “homem da multidão”, um velho magro e demoníaco, recusa estar sozinho, precisa inexplicavelmente das massas, dos seus ruídos e vociferações, independentemente das suas qualidades (estamos já a caminho do “reino da quantidade”, a travessa em largura da cruz, de que nos fala René Guénon), mas nunca interage realmente com outros seres humanos, como se a presença do outro lhe fosse, a um tempo, fundamental e repugnante. Hoje, sentados em frente aos nossos objectos tecnológicos (porque albergam um intrincado logos) ou ocupantes da nossa mão, dos nossos dígitos, somos precisamente esse homem, na impossibilidade simultânea da solidão e do contacto.

Por outro lado, a globalização imprimiu uma machadada quase final nos chamados direitos individuais. Heidegger advertira-nos para as consequências radicais da primazia da técnica e de como esta embrulharia o seu criador numa teia da qual ele seria incapaz de se desenvincilhar. No filme “The Imitation Game” é exposto como a máquina adquire o seu estatuto máximo e rex, no sentido tirânico e devorador: o aparato codificador Enigma, que serve o império nazi, só pode ser batido por outra máquina e não por um grupo ainda que vasto de homens extremamente inteligentes, como explica Alan Turing ao construir o dispositivo que prefacia o actual computador. Este episódio marca a ascensão da técnica a um patamar de superioridade sobre o indivíduo do qual não voltará a descer, submetendo os sujeitos à presença e uso constante de objectos técnicos cujo funcionamento lhes escapa.

Afastamo-nos, assim, radicalmente, do tempo em que os objectos técnicos eram produzidos como reproduções melhoradas do corpo humano (como o martelo que imitava um punho, etc.. Hoje sobra-nos a, já de algum modo ridícula, transmissão de energia eléctrica que tem ainda como modelo o acto sexual). Neste novo mundo, os objectos técnicos baseiam a sua existência e funcionamento em formulações de partículas subatómicas, teorias quânticas, que são inspiradas por representações inacessíveis aos indivíduos que as utilizam ou são utilizados por elas. O progresso tecnológico preside assim à extinção do conceito moderno de indivíduo.

Hoje, sobretudo quando nos deparamos com questões que todos afectam num planeta cada vez mais pequeno e do qual foi erradicado o mistério, são os direitos colectivos que se preparam para assumir a primazia. Estes são apresentados como a possível salvação de uma humanidade que o excesso de individualismo e dos direitos individuais parecem conduzir, inevitavelmente, à extinção. O modelo económico neoliberal transformou o capitalismo num regime acéfalo e canibal, no qual definharam as responsabilidades individuais. As corporações transnacionais, com os seus conselhos de administração impessoais e os seus anónimos accionistas, substituem o tradicional capitalista/industrial, enfeitado pelo charuto e decorado Rolls Royce, que reproduzia ainda a inveja do estar aristocrático. A exponencialização, tida como imparável, do crescimento baseado no lucro, que se apresenta como a única possibilidade (there is no alternative), não tem consciência ou qualquer culpabilidade perante o seu auto-canibalismo e tem dependido, em grande parte, da deslocação das fábricas para países onde ainda é possível explorar intensivamente uma mão-de-obra barata, e da destruição sistemática da relação da espécie humana consigo mesma e com a Natureza, como se a primeira já não dependesse da segunda para a sua sobrevivência. O “mundo enquanto fábula” cartesiano permitiu ao conhecimento abandonar os seus limites ético-religiosos e avançar sem temor para a situação em que se acredita piamente na capacidade da humanidade para recompor aquilo que cega ou racionalmente destrói.

“O sonho da razão produz monstros” avisa uma gravura de Goya, na qual vemos um homem adormecido sobre uma mesa de trabalho, cercado de estranhos mochos, morcegos e outros seres monstruosos, que o assoberbam. O pintor espanhol prevê a monstruosidade de Auschwitz, o mais racional dos grandes crimes. Aparentemente, ninguém lhe prestou muita atenção e mesmo que tivessem prestado, provavelmente, pouco poderiam fazer.

Hoje, no mundo global, a ética dá lugar a uma nova moral, construída a partir de problemas e situações que dizem respeito ao que o presidente chinês Xi Jinping chama de “comunidade global de futuro partilhado”. Assim, ninguém tem a possibilidade de estar realmente sozinho, tal como ninguém se pode eximir da sua responsabilidade para com o outro.

As doenças do indivíduo, como as velhas histerias freudianas e a paranóia, a esquizofrenia enclausurada ou mesmo a depressão do actual homem-empresa, produto da sociedade da performance descrita pelo filósofo coreano Byung-Chul Han, não cessaram a sua existência, mas são ridiculamente insignificantes quando pensamos nas doenças colectivas como o aquecimento global e a destruição dos ecossistemas, a fragilidade neoliberal dos mercados ou as neo-pandemias para as quais se adopta uma cura autocrática, que passa precisamente pela ascensão dos direitos colectivos face aos direitos individuais. Esta emergência surge-nos, ainda por cima, crismada de uma inevitabilidade derivada da actual situação do planeta e surge decorada racionalmente como a única salvação possível de uma nova humanidade a haver.

*

O advento da pandemia provocada pelo covid-19 teve como resultado a visualização concreta, nas ruas das nossas cidades, entretanto reduzidas a espaços de consumo, centros comerciais, do design futuro deste mundo contemporâneo do qual o indivíduo rousseauniano se evola. Se, durante os séculos XIX e XX, na sequência das revoluções industriais e do deslocamento massivo para as cidades, já se referia a existência de multidões anónimas, como se descreve no início deste texto, a necessária utilização da máscara reforça de modo radical a anonimidade destas massas que hoje percorrem essas cidades. A Oriente é mais evidente: nas grandes metrópoles fervilhantes de milhões, a máscara altera, uniformiza, ainda mais a paisagem urbana, subtraindo-lhe a pequena dose de diferença que constitui a face humana. Afinal, a face é o que distingue um indivíduo do outro e permite o seu reconhecimento efectivo. As roupas, os cortes de cabelo, as joias, os automóveis, são símbolos eminentemente sociais e não individuais. De máscara posta, reconhecemos um grupo, uma pertença, até talvez uma ideologia, mas não um indivíduo.

De máscara em riste, fenece a empatia. A face – lugar da irredutível diferença, da prova da existência individual, a face que nos “impede de matar” (Levinas) – surge agora ocultada. Ora se a face é o lugar da irredutível diferença, da prova do indivíduo, a sua ocultação significa a extinção desse indivíduo na massa, passando a ser unicamente reconhecido pelos símbolos colectivos que ostenta mas não por aquilo que imediata e radicalmente o diferencia de todos e o torna num ser único – a sua face ou, se quisermos, a facialidade (visageté).

Tal explica a maior, ainda que fútil e perigosa, resistência ao uso da máscara sanitária em tempo de pandemia no Ocidente, que ainda se sonha eminentemente individualista, por oposição ao Oriente confucionista, onde a moral é há muitos séculos a principal preocupação dos pensadores e dos sistemas de pensamento. Em palavras contemporâneas, diríamos que, para Confúcio, o homem é, antes de mais e de tudo, um produtor de moral. Sabe distinguir o bem do mal e encontra-se dotado de livre arbítrio. Estas qualidades distinguem-no dos animais e de todos os outros seres. Portanto, daqui advém também a sua responsabilidade, o dever de incorrer em acção correcta, de modo a criar um mundo em que prevaleça a harmonia.

Assim, o modo como se apresenta, como se veste, como anda e como fala; o que diz, o que lê, o que desenvolve como actividade, o que produz e como se dirige aos outros; enfim, toda e qualquer acção humana (e mesmo a ausência dela) é imediatamente produtora de valores morais (e, num plano superior, estéticos), quer como exemplo para os outros, quer a partir dos resultados das práticas concretas.

De sublinhar que, ao contrário de Sartre (para quem “o inferno são os outros”), o confucionismo clássico só entende o homem em relação com outros homens, como animal gregário, social e cultural. Para ele, a vida são os outros e este é um facto incontornável. Dos desígnios do Céu, do mundo, da vida depois da morte, dos espíritos, pouco ou nada sabemos e de nada podemos ter a certeza. Por isso, antes de mais, devemos regular o que podemos controlar: as nossas relações humanas e sociais.

O confucionismo é um pensamento moral e ético, que visa uma prática, destinado a contribuir para uma excelsa regulação das relações entre os homens e destes com o mundo. Pensamento político, com certeza e, em grande parte, destinado aos que exercem o poder, no sentido de os convencer da necessidade imperiosa de autovigilância, virtude e benevolência nas suas acções, o confucionismo cedo ignora a metafísica e centra-se na regulação dos assuntos humanos.

Não por acaso, os actuais movimentos sociais de protesto utilizam a máscara para contrariar a tecnologia de reconhecimento facial, que se erigiu em arma repressiva, sustentada pela proliferação de câmaras de vigilância.

Paradoxalmente, portanto, espelham a anulação do indivíduo na sociedade contemporânea. É o caso das máscaras de Guy Fawkes, inspiradas pelo grupo virtual Anonymous e divulgadas pelo filme dos irmãos Wachowski “V for Vendetta”, utilizadas em vários Occupy; ou das máscaras negras dos activistas de Hong Kong, entre outros. A utilização de máscaras implica prescindir de uma responsabilidade individual nos protestos, de um assumido temor individual de represálias futuras, impensável, por exemplo, nas manifestações parisienses do Maio de 68. Nessa altura, a máscara não fazia parte da parafernália do cidadão, que orgulhosamente ostentava a sua face enquanto indivíduo politicamente consciente e orgulhosamente distinto da manada submissa e sem consciência de classe. A face mascarada pertencia ao reino do bandido, do assaltante, do fora-da-lei, sem consciência política e social.

*

Não é que este sentimento de perda individual não existisse já antes da pandemia e do uso da máscara. Por exemplo, como explicar a extraordinária disseminação recente da prática da tatuagem? Estamos longe, por exemplo, da explicação dada por Claude Lévi-Strauss, quando nos seus “Tristes Tropiques”, refere as tatuagens dos índios Caduveros como um meio de mostrar que se pertence à comunidade dos humanos por oposição aos animais e ao estado natural. Neste caso, não tatuar o corpo significaria uma recusa de pertencer ao grupo e, portanto, de se excluir da humanidade. Por outro lado, Lévi-Strauss refere que cada tatuagem, além deste objectivo geral, representa com os seus grafismos específicos a posição social de cada um.

Já Slavoj Zizek, curiosamente em sintonia com o referido antropólogo, entende que o uso da tatuagem estará relacionado com o pudor. Para o filósofo esloveno, a proliferação das tatuagens consiste num revestimento da pele, de um corpo que não se suporta totalmente nu, de tal forma que mesmo quando está sem roupa nunca se apresenta despido e natural.

É, contudo, na nossa opinião, Jean Baudrillard quem mais se aproxima de uma explicação eficiente quando, em “L’échange symbolique et la mort”, alvitra que o desenvolvimento do individualismo foi acompanhado de uma sacralização do corpo que “investido de um valor de troca, se torna num objecto fétiche” que é preciso fazer render, seja no ginásio, seja através da sua inscrição. A tatuagem passaria assim pelo “narcisismo da pequena diferença”, uma forma de se fazer notar e suscitar o desejo.

Quanto a mim, na linha deste autor, a tatuagem, os piercings, parecem-me ser uma tentativa inconsciente, um acto desesperado de individuação, na medida em que cada sujeito julga tornar o seu corpo indelevelmente distinto pela inscrição do que ele, enquanto hiperconsumidor (Gilles Lipovetsky, Le Bonheur paradoxale), entende ser uma escolha própria, especial, de símbolos individualizados. Se, nas sociedades passadas, a tatuagem significava a pertença a um determinado grupo, hoje a tatuagem procura sobretudo marcar a diferença, com todo o desespero possível a um “escravo de Estaline”, a frase que alguns dos prisioneiros dos gulags tatuavam nas testas, como forma de denúncia e resistência. Claro que, nas tatuagens contemporâneas, os símbolos são colhidos em conjuntos pré-existentes e que muito pouco têm de individual, constituindo assim mais uma armadilha de comportamento grupal, travestido de representação individuada, neste suave gulag global da produtividade e do crescimento económico compulsivo, do que uma resposta efectiva ao pressentido pesadelo: o esvanecer inelutável do indivíduo.

Não vale a pena insistir na ilusão, como se o desaparecimento do Outro, proclamado por Byung-Chul Han, em “A Agonia de Eros”, significasse um reforço de Si. Han tem razão quando atribui ao sujeito contemporâneo um narcisismo primário, relacionado com o sucesso e distante do amor-próprio. Contudo, este sucesso precisa do reconhecimento alheio. É, nesse sentido, predador como a sociedade que o inspira. Mas, bem vistas as coisas, o outro apenas se extingue, impossibilitando Eros, ou se torna insignificante, minimal, quando se dá ao mesmo tempo um esbatimento de Si, num movimento narcísico primevo de contemplação bacoca que implica extinção e morte de um logos único, na própria reflexão distorcida do indivíduo. Sim, somos atópicos, sem outro lugar que não seja, ainda assim, o reflexo que o outro nos proporciona. E, sem lugar próprio, sem Lago Biel para experimentarmos ao limite esse sentimento de Si, profundamente individual, somos finalmente meros sujeitos, como queria o estruturalismo, e não o homem senhor de si mesmo, capaz de justificar e responder pelas suas próprias decisões, que Nietzsche pretendeu, em desespero, imaginar como futuro. A questão ganha então um sentido trágico, irreversível, quando o dito outro, antes erotizado, deixa também de ter uma existência concreta e se resume a um devir digital, tinderizado.

Conclusão: és um peixe, parte de um cardume, numa rede. O que terei sempre de meu, de único, de irrevocável, de intransmissível na sua imensidade, é a dor. Aí, talvez, em certos casos, valência no caos, luz trémula na noite do mundo, persista ainda a permanência dessa ilusão que entendemos chamar indivíduo.

Artigo publicado na revista Torpor

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