h | Artes, Letras e IdeiasA Relíquia, de Eça de Queirós – 7 (de 8) Paulo José Miranda - 30 Nov 2021 Mas voltemos ao mal radical, tal como Kant enunciara no seu texto de 1793. E neste regresso ao filósofo alemão e ao mal radical, vamos responder aos dois primeiros sentidos gerais do capítulo 3, que adiantamos anteriormente: o sentido da eternidade do mal e o sentido do título do livro. No seu regresso a Lisboa, Teodorico traz uma arca com presentes, com relíquias da Terra Santa, não apenas para a titi, mas para vários dos seus amigos, os padres que frequentavam a sua casa. Evidentemente, a relíquia maior, tal como ele referia, era a que trouxe para a titi, a coroa de espinhos que esteve na cabeça de Jesus Cristo no Calvário. Mas é ainda em Jerusalém, no Horto das Oliveiras, debaixo da mais velha oliveira, que nos deparamos novamente com o mal radical. Quando Teodorico projecta a sua chegada a casa, junto da titi. Leia-se às páginas 230 e 231: «E, enchendo o meu cachimbo, eu sorria aos meus pensamentos! Ao outro dia deixaria esta cinzenta cidade que lá em baixo se agachava entre os muros fúnebres, como viúva que não quer ser consolada… Depois uma manhã, cortando a vaga azul, avistaria a serra fresca de Sintra: as gaivotas da pátria vinham dar-me o grito de boa acolhida, esvoaçando em torno dos mastros; Lisboa pouco a pouco surgia, com as suas brancas caliças, a erva nos seus telhados, indolente e doce aos meus olhos… Berrando: “Oh titi, oh titi!”, eu trepava pelas escadas de pedra da nossa casa em Santana: e a titi, com fios de baba no queixo, punha-se a tremer diante da grande relíquia que eu lhe oferecia, modesto. Então, na presença de testemunhas celestes, de S. Pedro, de Nossa Senhora do Patrocínio, de S. Casimiro e de S. José, ela chamava-me “Seu filho, seu herdeiro!” E ao outro dia começava a amarelecer, a definhar, a gemer… Oh delícia! // De leve, sobre o muro, entre as madressilvas, um pássaro cantou: e mais alegre cantou uma esperança no meu coração! E a titi na cama, com o lenço negro amarrado na cabeça, apalpando angustiosamente as dobras do lençol suado, arquejando com terror do diabo… era a titi a espichar, retesando as canelas. Num dia macio de maio metiam-na, já fria e cheirando mal, dentro de um caixão bem pregado e bem seguro. Com tipoias atrás, lá marchava D. Patrocínio para a sua cova, para os bichos. Depois quebrava-se o lacre do testamento na sala dos damascos, onde eu preparava, para o tabelião Justino, pastéis e vinho do Porto: carregado de luto, amparado pelo mármore da mesa, eu afogava, num lenço amarfanhado, o escandaloso brilho da minha face […] Oh! êxtase! […] Eu servira os santos para servir a titi. Mas agora, inefável deleite, ela na cova apodrecia: naqueles olhos, onde nunca escorrera uma lágrima caridosa, fervilhavam gulosamente os vermes: sob aqueles beiços, desfeitos em lodo, surgiram enfim, sorrindo, os seus velhos dentes furados que jamais tinham sorrido… Os contos [o dinheiro] de G. Godinho eram meus; e libertado da ascorosa senhora, eu já não devia aos seus santos nem rezas, nem rosas! Depois, cumprida esta obra de justiça filosófica, corria a Paris, às mulherzinhas!» Esta extensa citação é necessária, pois Eça não poupa o carácter de Teodorico. Ele mesmo não se poupa a si mesmo, desvendando todo o seu mal, todo o mal radical de que não se liberta. De que não se liberta, porque, acima de tudo, o mal radical, segundo Kant, é aquilo que temos de combater. Leia-se: «[…] mal radical da natureza humana; este […] constitui a mancha pútrida da nossa espécie, mancha que, enquanto a não tiramos, estorva o desenvolvimento do gérmen do bem […].» (44) Este mal radical a que Kant se refere é o de todos sem excepção, se não exercer o seu livre-arbítrio no combate às más inclinações. Porque é precisamente do mal que todos partimos, segundo Kant. Aquilo que nos pode diferir de Teodorico Raposo é o exercício da nossa liberdade no combate às más inclinações. Leia-se uma vez mais Kant: «[…] na formação moral da inata disposição moral para o bem, não podemos partir de uma inocência que nos seria natural, mas temos de começar pelo pressuposto de uma malignidade do espírito na adopção das suas máximas contra a disposição moral originária, e visto que a disposição para tal é inextirpável, começar por agir incessantemente contra ela.» (57) Para Kant, é neste combate ao mal, neste exercício de liberdade em conformidade à razão, que um homem se transforma, que vai de pior a melhor. Leia-se, ainda à página 57: «[…] segue-se que a transformação da disposição de ânimo do homem mau na de um homem melhor se deve colocar na mudança do supremo fundamento interior na adopção de todas as suas máximas segundo a lei moral, na medida em que este novo fundamento (o coração novo) é agora ele próprio imutável. […] mediante o emprego das suas próprias forças, ele deve poder esperar chegar ao caminho que a tal conduz e lhe é indicado por uma disposição de ânimo melhorada no seu fundamento: pois deve tornar-se um homem bom, mas só deve ser julgado como moralmente bom quanto ao que lhe pode ser imputado como por ele próprio feito.» Exercício que não é levado a cabo por Teodorico Raposo, a despeito de quase no final parecer ser isto que acontece ao nosso anti-herói de A Relíquia. Teodorico não se liberta da raiz do mal, pelo contrário, a cada página fortalece a raiz. Leia-se estas palavras da «Consciência» de Teodorico Raposo para ele mesmo: «[…] tu podes ainda descer a misérias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraísos da Terra e ser director de um banco… Isso depende meramente de ti e do teu esforço de homem.» (279) De facto, no último capítulo dão-se várias mudanças na vida de Teodorico, antes de se casar: é escorraçado de casa da titi, estabelece-se como «vendilhão de relíquias» da Terra Santa e volta a cair em desgraça, depois de ter esgotado toda a credibilidade do mercado. Credibilidade do mercado de relíquias santas é um delicioso oxímoro. E, neste caso, não podemos deixar de citar as palavras do intermediário de Teodorico que diz: «Esta léria não pega, senhor – gritou ele, com as veias a estalar de cólera na fronte esbraseada. – Foi Vossa senhoria que estragou o comércio!… Está o mercado abarrotado, já não há maneira de vender nem um cueirinho do Menino Jesus, uma relíquia que se vendia tão bem! O seu negócio com as ferraduras é perfeitamente indecente… Perfeitamente indecente! É o que me dizia noutro dia um capelão, primo meu: “São ferraduras de mais para um país tão pequeno!…” Catorze ferraduras, senhor! É abusar! Sabe Vossa Senhoria quantos pregos, dos que pregaram Cristo na cruz, Vossa Senhoria tem impingido, todos com documentos? Setenta e cinco, senhor!… Não lhe digo mais nada… Setenta e cinco! //E saiu, atirando a porta com furor, deixando-me aniquilado.» (271) Teodorico Raposo continuava a ser aquilo que sempre fora: um aldrabão, um mentiroso. Desta feita, não apenas em relação à titi e aos que lhe frequentavam a casa, mas em relação a todos os crentes ávidos por uma relíquia «verdadeira» da Terra Santa. Continuava a aprofundar as raízes do mal, ao invés de se libertar delas. Mas depois de voltar a cair em desgraça, com a quebra do mercado de relíquias santas, dá-se o famoso encontro com a sua consciência. Ao contrário do que Teodorico pensava, não foi Deus que o castigou, mas a sua «Consciência». Consciência que, apesar de tudo, não teve qualquer efeito nas acções de Teodorico, como se verá na próxima e última semana. Continua na próxima semana.