Sobrancelhas Carismáticas / A assinatura de Maggie Cheung

Segundo o matemático francês Pascal, se Cleópatra tivesse tido um nariz mais pequeno a história da Humanidade teria sido outra.

A receita de que vamos agora falar levou milhares de anos a aperfeiçoar-se e, se seguirmos o seu rasto, descobriremos uma história secreta que nos vai conduzir através de antigos túmulos da Antiguidade e de sociedades subterrâneas que desbravaram caminho até à conquista da liberdade de expressão. Estou a falar-vos das sobrancelhas tingidas de dai, um meio que as mulheres da antiguidade chinesa utilizaram para reescrever os cânones de beleza há muitos séculos.

Não existe tradução para o tom definido pela palavra “dai”. O pigmento azul escuro é interessante porque o elemento chave que o compõe era importado da Pérsia e as concubinas do Imperador davam tudo por tudo para possuir uma ínfima quantidade desta substância. O preço do produto disparou rapidamente, tal e qual a bitcoin dos nossos dias. Há quem diga que este violeta escuro é extraído de um caracol marinho que habita no Mediterrâneo.

A história começa há 5.000 anos atrás, na cómoda de uma misteriosa rainha que vivia na região ocidental, no “Palácio das Nuvens”, que muito provavelmente correspondia à zona a que nos referimos actualmente como Montanhas Kunlun. Grande parte da história da Rainha Ocidental perdeu-se na noite dos tempos, mas foi durante a sua vida que pela primeira vez foi mencionado o termo dai – que é também a cor que os poetas chineses usam para descrever os longínquos cumes das montanhas. Figura altamente respeitada dos primórdios conhecidos da civilização chinesa, desenhava as sobrancelhas como se de caligrafia se tratasse, para enfatizar a sua força interior; sobrancelhas que se deixavam acompanhar por lábios pintados em forma de cereja e por ombros e um físico fugidios. Eram estes os elementos chave que, qual assinatura, caracterizavam a sua aparência. O estilo popularizou-se entre o seu povo e alastrou-se às civilizações vizinhas, como a península da Coreia e as ilhas do Japão.

Se avançarmos 3.000 anos, vamos encontrar nada mais nada menos do que Yang Guifei que, pela primeira vez, empunhou a batuta e dirigiu a operação de maquilhar todas as beldades da corte Tang. Os lábios de cereja escarlates não tinham valor sem umas ousadas sobrancelhas em tons de azul escuro, púrpura, magenta ou verde. As avant-garde da antiguidade Tang também pintavam as maçãs do rosto de rosa vivo, para acentuar a compleição de porcelana típica das mulheres asiáticas. Milhares de anos mais tarde, escavações realizadas na China central iriam revelar túmulos com murais onde eram representadas beldades excêntricas guardadas em bolsas do tempo perdido, juntamente com antigos despojos.

Em 2010, a actriz de Hong Kong Maggie Cheung protagonizou Ten Thousand Waves, o seu último filme antes de ingressar numa carreira musical. Maggie Cheung completou 57 anos este ano, em Setembro, o que revela o seguinte paradoxo: por mais versátil, desafiante e variado que seja o seu trabalho, a própria Cheung permanece surpreendentemente fiel à sua imagem, uma assinatura da sua personalidade. Será sempre a mesma mulher com as suas carismáticas sobrancelhas, onde se esconde um espírito criativo e inabalável. Na verdade, vi pela primeira vez Full Mon in New York, em 1990, e lembro-me que a sua imagem dessa altura permanece quase inalterada nos dias de hoje. Sempre com um sorriso silencioso, sempre um pouco melancólica, as sobrancelhas sempre perfeitas.

Se acreditarmos que Tom Hardy consegue representar com as costas, então Maggie Cheung consegue representar com este ingrediente puro – as suas sobrancelhas – que vai misturando com alguns outros ingredientes para obter uma abordagem mais subtil das suas necessidades criativas.

Ao longo das décadas foi mudando de penteado, mas as sobrancelhas sofreram muito poucas alterações. Em Centre Stage (1991) assumiam uma forma que fazia lembrar um salgueiro alongado, seguida de uma forma mais estilizadas em alguns filmes de época, mas, basicamente, as suas sobrancelhas continuaram a adejar numa forma perfeita. Dois micro bisturis que revelam a anatomia da sua arte, intensamente privada mas no entanto repleta de uma energia  característica e de uma visão pura. Mais um factor para me lembrar que tenho de pensar sobre a mística da caligrafia chinesa.

Em 2015, a actriz lançou o seu primeiro álbum como cantora, cinco anos depois de se ter retirado da indústria cinematográfica. Numa época em que excelentes actores se tornam cantores, Maggie Cheung dedicou-se à música quando ficou mais velha. Um jornalista comentou: “Maggie não canta bem, mas é tão obcecada que podemos facilmente afirmar que enquanto canta apenas desfruta de si própria.” E Maggie reagiu: “Se as pessoas não gostarem da minha música, podem optar por não a ouvir porque existem imensas muito boas.”

As suas canções devem ser ouvidas naqueles raros momentos da vida em que a nossa mente está em paz, com uma pitada de ironia e outra de sentido de humor. É como a caligrafia.

Maggie Cheung Man-yuk é actriz cantora e compositora. Cresceu em Hong Kong e na Grã-Bretanha.

 

A não perder:

Days of being Wild (1990) Blue Snake (1993) New Dragon Inn (1992) Hero (2002) Centre Stage (1991)

Citações famosas de Maggie Cheung, para memória futura

Não quero chegar ao fim a pensar que só fiz uma coisa na vida.
. Penso que a necessidade de ser forte e sobreviver a todas as adversidades que aparecem no meu caminho vem de um lugar muito remoto de mim própria. 

. Já fiz de fantasma, de gato e de cobra. Fui engraçada e fui triste. Fui filmada a voar. Por isso, porque não dedicar-me a outra coisa qualquer? Não tenho de aceitar tudo o que me oferecem.

. Não me quero repetir.  Cada vez é mais difícil encontrar alguma coisa interessante.

 

{ Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.}

 

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