Ruy Cinatti, uma poesia com vultos

Disse Jorge de Sena, no prefácio a um livro de Ruy Cinatti, que os literatos seus contemporâneos, em matéria de insulíndias não iam além das livrarias do Boulevard Saint Michel. De facto, poucos como este poeta nascido em Londres em 1915 olharam de forma tão intensa para fora do eixo euro-americano, para terras que são as eternas ilhas dos exotismos dos outros. Cinatti escolheu Timor – por ninguém desejado ou escolhido, devastado que era pela invasão japonesa e pela péssima administração – não como um lugar de sensualidades imprevistas, mas como uma geografia humana, real e sensível. Foi aí que ele deu largas a uma amorosa compreensão do espaço e das gentes, e por isso se chama Timor-Amor um de seus livros.

Homem de ciência e de terreno, da agronomia (sua formação de base) e da meteorologia, passou à etnologia e à antropologia (sempre timorenses, bem entendido). Na mesma década em que dirigiu, com Tomaz Kim e José Blanc de Portugal, os Cadernos de Poesia, chefiou também o gabinete do governador desta colónia portuguesa, de quem fala num poema dos anos 70: “Desse digo eu,/ que me queria às vezes/ para seu poeta,/ sorrindo às minhas luzes de botânico,/ «Você… da Orta…/ Eu, Albuquerque!»”, um que acabou “com os miolos fritos/ pegados no teto”.

Mas as tais luzes de botânico deram para ter duas plantas batizadas com o seu nome, tal como o seu predecessor em Timor, o também poeta-botânico Alberto Osório de Castro. Cinatti vai e vem daquele território português e, entre os anos de 1951 e 1956, lá o encontramos diretor dos serviços de agricultura. Porém, incompatibilizado com a administração colonial, regressa a Lisboa. As visitas à “ilha verde e vermelha” ficarão cada vez mais condicionadas, até à definitiva proibição em 1966. Metido em Lisboa, dedicou-se a uma errância mais condicionada e à poesia das famosas folhas volantes, que distribuía mão a mão.

Os versos timorenses, sobretudo o livro central Paisagens timorenses com vultos (1974), conseguem grande concisão nas suas intimações sobre o espaço e as gentes: diretas, despretensiosas, abertas ao estremecimento emocional e até ao humor: “Em Díli./ Em Baucau, tanto faz.// Um médico suplicava: «Não leias António Nobre,/ que eu adoeço».”

Centrada numa atenção ao quotidiano que comunica diretamente com a linguagem de alguns poetas dos anos 70, a escrita de Ruy Cinatti abre-se a um tipo de discurso que a poesia portuguesa demorou a levar a sério. Mas bem antes, já nos anos 40, Cinatti constituía uma ruptura na poesia portuguesa, já que os Cadernos pretendiam ser uma opção quer ao presencismo, quer ao neo-realismo.

O outro aspecto que ressalta nos versos dedicados a Timor é que aqui se realiza, talvez pela primeira vez na poesia portuguesa, uma forma de lidar com o mundo não-europeu que o não subjuga ao filtro do império e de seus avatares.

Quer dizer, não é o Timor português, projeção colonial de um Portugal sempre fora de si, que se colhe destes versos, apesar de o poeta ter vivido o império in loco e de até o ter defendido em seu estertor. Não admira, pois, que o nome do poeta tenha caído na marginalidade, apesar da galeria ilustre de predecessores, como Camões ou Pessanha, cuja escrita – tal como a de Cinatti – dependeu estreitamente das formas que historicamente assumiu o funcionalismo colonial português.

Neste sentido, é a partir do precedente aberto por este poeta que alguma poesia portuguesa contemporânea pode aceitar uma representação descomprometida e cosmopolita de espaços não-europeus: de forma notável na poesia de ambiente turco e chinês de Gil de Carvalho, mas também na poesia “macaense” de José Alberto Oliveira, na série «Poemas Orientais» de Fernanda Maldonado e ainda nos curiosos poemas japoneses de Miguel-Manso, numa dispersão geocultural que contrasta com o lastro de provincianismo que também deixou a sua marca na poesia portuguesa contemporânea. É partindo dos luminosos passos de Cinatti que novos poetas instauram novas formas de se falar na Ásia em Portugal, superando as marcas discursivas do exotismo orientalista. Longe do Oriente como metáfora do império ou locus exótico, o novo Oriente da poesia portuguesa é agora uma Ásia que é um entre outros interesses culturais, geográficos e sociais. Em suma, este descentramento físico e mental em relação ao espaço europeu, a constante plasticidade discursiva e ainda a positividade de fundo cristão são coisas que juntas se acham raramente e que não voltaram, depois de Ruy Cinatti, a juntar-se na poesia portuguesa.

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