A americana

Tens dezoito anos e já percebeste que os jardins são iguais em todas as cidades. Viste a mesma estação de caminhos de ferro em todo o lado, viste o mesmo alinhamento de árvores nas alamedas em todo o lado, viste os mesmos bolbos raquidianos em todo o lado. Concluis que não existe um lugar que seja o teu. O mundo é uma paragem distante e a vida pouco ou nada te restitui. Tropeças mais nas ideias do que em ti próprio.

Restam-te os vinte metros quadrados do teu quarto. É a essa nave espacial a que pertences. Nela evaporas toda a cidade de Paris a bordo das cartas de Mário de Sá Carneiro. Nela bebes chá de frutas comprado numa loja de estrada em Badajoz. Nela traças a circum-navegação que te permite idolatrar seja quem for, ainda que não haja vivalma por quem possas morrer de desgosto.

Pensarás: A consciência de si própria nunca é actual. O que vem até mim – o que vejo e o que lembro – desaparece e esvai-se em cada instante. É como se o leme do barco existisse fora do barco e me lançasse a sós, metros e metros à frente da proa, no meio do oceano alteroso. Esse barco é afinal o curso da vida (repetes para ti próprio em surdina): um continente adiado, sempre meio perdido.

Adorarias apagar-te, fazer dos dias uma subtração. Sempre que sais de casa, fixas os olhos nas linhas imprecisas do asfalto. O teu corpo modificou-se e as vozes que nele e dele irradiam atropelam-se. Não imaginas sequer o que te falta, porque, muito provavelmente, viver é estar em falta. Quer olhes de baixo ou por cima para essa fonte rodeada de vasos, quer a olhes do interior onde cai a água ou de fora por onde agora passam os carros, é sempre a mesma fonte que tu observas. Mas nunca a abarcas na totalidade. A transcendência é apenas uma palavra que te segreda que tudo à tua volta está desconectado. Por isso sentes a vida como uma quebra e não sabes sequer como a exprimir com a tua boca. O medo não tem biologia, nem compleição. O medo é não poder convidar ninguém, não incitar a carne, não intimar o escuro.

Pensarás: Aquilo que nos espera é o oco profundo de um saguão, onde por vezes há pássaros escondidos que redemoinham a claridade. E assim foi.

Num fim de tarde uma americana apontou para o mapa e fez-te uma pergunta. Nesse tempo não havia americanos à procura de torsos e de talhes romanos. Quando muito, um simca chambord com franceses nos meses de verão ou os vates ingleses que começavam a escorchar os algarves. Foi uma raridade própria dos módulos lunares poderes seguir os passos dessa americana que tinha deixado os pais no parque de campismo e que navegava à vista pelas calçadas da cidade. Repartiram idiomas ou arquipélagos breves construídos nas tuas recentes viagens, já que o liceu e os primeiro anos da faculdade apenas te tinham cedido advérbios. A americana vertia linhas enxutas, o olhar azul bebé e um rosto seco de amêndoa, mas estava arrebatada com os ocres dos rodapés e com o calígrafo que exibias no teu jeito de andar.

Pensarás: Dizer o coração nas mãos é uma invenção da linguagem. Uma locução, uma frase, uma metáfora, não sei. Mas a invenção inundou a realidade da palma das mãos, suou-as e transformou-as numa espécie de bambu à chuva. Eis que a quiromancia não passa, afinal, de um deserto. Cada destino terá a sua linha, mas agora a linha é a que cada um dos dois pisa. O andamento, a lentidão, talvez o coração seja uma cidade para desencarnar distâncias. Respirei fundo o meu pensamento, confesso.

Ela queria perceber o sorriso das gárgulas, os ângulos dos relógios solares, a idade precisa dos primeiros arcos góticos, a dimensão da ladeira por onde antes passavam os reis, os caminhos da judiaria, enfim, o fado.

E de certeza que te quis perceber a ti que tinhas uma palavra para tudo, nem que fosse por causa do entrelaçado com que versavas os gestos rápidos, fugidios. Entraram no pátio do palácio e desceram até aos confins da muralha. Aí permaneceram do mesmo modo que se atinge uma derradeira finisterra e pela frente nada mais se vislumbra, a não ser o mar. Mas nesse molhe de proximidades havia cedros, a lateral de uma igreja, duas ogivas e, ao fundo, o horizonte a fazer de torno compressor.

Pensarás: Ela tem uma perna ligeiramente à frente da outra. A saia é comprida, leve com cores de tijolo e folhas de jarro estampadas. Está tudo ali.

Na tua frente e depois a teu lado, a escassos centímetros, a americana está imersa na tua presença. Ela quase que plana no fundo do lago por onde cresce a pulsação. Mas tu não sabes onde colocar os braços e pressentes que a cabeça corrupia. Uma penumbra de fim de inverno galga o plano da noite. Sim, anoiteceu repentinamente e a rua, o passeio, os terraços, o paço, as janelas, os arcos, tudo está fechado, vazio, desabitado. Esta urgência dos corpos parece ter sido concebida para que os dois fossem um único estilhaço a vibrar no crepúsculo. Não sei se hesitas, nem sei se ela espera que tu deixes de hesitar. O sexo é o magistério que corta, que transborda. Bastaria o mais leve indício, o golpe. Fosse o que fosse que se evadisse do mundo.

Pensarás: que partido tiraste, anos mais tarde, das leituras de John Ruskin? Em jovem apaixonou-se pelo jacente do túmulo de uma mulher que em vida se chamou Ilaria di Caretto. O brilho dos lábios, a liquidez oval do rosto e a lascívia com que as mãos se abriam na pedra perseguiram-no a vida toda. O casamento com Effie Gray seria anulado por nunca ter havido consumação e nos poemas, dedicados à adolescente por quem se apaixonou já em velho (Rose la Touche), era ainda à escultura de Ilaria que o esteta romântico verdadeiramente se dirigia.

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