A Arquitectura e o Jogo

Guy-Ernest Debord (1931-1994)

(tradução de Emanuel Cameira)

Johan Huizinga, no seu Ensaio sobre a Função Social do Jogo, declara que “… a cultura, nas suas fases primitivas, contém as características de um jogo, desenvolvendo-se segundo as formas e na atmosfera do jogo”. O idealismo latente do autor, e a sua apreciação estritamente sociológica das formas superiores do jogo, não desvalorizam a contribuição inaugural da sua obra. Em contrapartida, é inútil buscar nas nossas teorias sobre a arquitectura ou a deriva outros motivos que não a paixão pelo jogo.

Por mais que o espectáculo de quase tudo o que acontece no mundo desperte a nossa raiva e repulsa, sabemos, cada vez mais, como nos divertir com tudo. Aqueles que disto depreendem sermos ironistas são demasiado ingénuos. A vida à nossa volta é feita para obedecer a necessidades absurdas e, inconscientemente, tende a satisfazer as suas verdadeiras necessidades.

Essas necessidades e suas satisfações, compreensões parciais confirmam, por toda a parte, as nossas hipóteses. Por exemplo, um bar chamado Au bout du monde [Nos confins do mundo], no extremo de uma das unidades mais icónicas de Paris (o bairro das ruas Mouffetard-Tournefort-Lhomond), não está lá por acaso. Os acontecimentos não pertencem ao acaso senão quando conhecemos as leis gerais da sua categoria. É necessário um esforço de consciencialização, tão amplo quanto possível, dos elementos que determinam uma situação, à parte dos imperativos utilitários cujo poder sempre diminuirá.

Queremos, para a arquitectura, uma organização muito parecida à que desejamos para a nossa vida. Como é costume dizer-se, as belas aventuras só podem ter por cenário e origem os bairros elegantes. A noção de bairros elegantes mudará.

Actualmente já podemos apreciar a atmosfera de algumas áreas desoladas, tão propícias para a deriva quanto escandalosamente impróprias para habitação, onde, ainda assim, o regime aprisiona as massas trabalhadoras. O próprio Le Corbusier reconhece, em O urbanismo é uma chave, que se tivermos em conta o miserável individualismo anárquico da construção nos países altamente industrializados, “… o sub-desenvolvimento pode ser tanto a consequência de um excedente quanto de uma escassez”. Esta observação pode naturalmente voltar-se contra o promotor neo-medieval da «comunidade vertical».

Indivíduos bastante diferentes esboçaram, mediante abordagens aparentemente similares, algumas arquitecturas intencionalmente desconcertantes, que vão desde os célebres castelos do rei Luís da Baviera a essa casa de Hanôver que, ao que parece, o dadaísta Kurt Schwitters perfurou com túneis e complexificou com uma floresta de colunas de objectos aglomerados. Todas essas construções recuperam um carácter barroco, tal como se encontra evidenciado nos ensaios de uma arte integral, que seria absolutamente determinante. A este respeito, importa assinalar as relações entre Luís da Baviera e Wagner, que deveria, ele próprio, buscar uma síntese estética, da maneira mais penosa e, no fim de contas, mais vã.

Convém deixar claro que se as manifestações arquitectorais, às quais somos levados a atribuir valor, estão de algum modo relacionadas com a arte naïf, estimamo-las por algo bem diferente, a saber, a concretização de forças futuras inexploradas de uma disciplina economicamente pouco acessível às «vanguardas». Na exploração dos valores mercantis estranhamente ligados à maioria dos modos de expressão da ingenuidade, é impossível não reconhecer a exibição de uma mentalidade formalmente reaccionária, bastante parecida à atitude social do paternalismo. Mais do que nunca, acreditamos que os homens merecedores de alguma estima devem ter sabido como responder a tudo.

Os riscos e os poderes do urbanismo, que actualmente nos contentamos em utilizar, não porão fim ao nosso objectivo de participar, tanto quanto possível, na sua construção real.

Sabemos bem que o domínio provisório e livre da actividade lúdica, que Huizinga acredita poder opor enquanto tal à «vida quotidiana» caracterizada pelo sentido do dever, é o único campo, fraudulentamente limitado por tabus de pretensão duradoura, da vida verdadeira. Os comportamentos de que gostamos tendem a estabelecer todas as condições favoráveis ao seu pleno desenvolvimento. Trata-se agora de alterar as regras do jogo, de uma convenção arbitrária para um fundamento moral.

Tradução de: Debord, Guy-Ernest, “L’Architecture et le Jeu” [1955], in Potlatch 1954-57, Paris, Éditions Gérard Lebovici, 1985, pp. 137-140.

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